FILOSOFO JOSÉ ALCIMAR* A MANAUS QUE NÃO CONSEGUE RESPIRAR: OU A AUSCHWITZ PÓS-MODERNA DO SÉCULO XXI

Manaus 01 05 2020-Manaus (AM) – Aldenor Basques Félix Gutchicü, vice-cacique da comunidade Wotchimaücü, do povo Tikuna, morreu com suspeita de Covid-19, em sua casa no bairro Cidade de Deus, na zona norte de Manaus. A família aguardou por mais de sete horas para que o corpo do indígena fosse retirado da igreja evangélica, onde ficou acomodado em três mesas de plástico, pelo serviço SOS Funeral, da Prefeitura de Manaus. À meia-noite de ontem os restos mortais do cacique foram levados pelos funcionários para uma câmara frigorífica do cemitério municipal Nossa Senhora Aparecida, no bairro Tarumã, na zona oeste da cidade. No local, Aldenor foi sepultado ontem, às 15h30, em uma vala coletiva, onde são enterradas as pessoas que não podem pagar por um caixão.(Foto:Fernando Crispim/Amazônia Real)
José Alcimar de Oliveira *
A exigência que Auschwitz não se repita
é a primeira de todas para a educação (Theodor Adorno).
01. Há quase um ano não seria possível imaginar que a pandemia,
combinada ao pandemônio da necrocracia que nos governa, chegasse à
tragédia social de mais de 200 mil mortes. Antes de usurpar a presidência
que ocupa e mantém pelo poder da mentira e da conivência dos poderes
institucionais, sob rédea curta da autocracia burguesa, livre sem controle, o
presidente lamentava que a ditadura empresarial-militar, em pouco mais de
duas décadas, não tivesse assassinado pelo menos 30 mil brasileiros. Nos
últimos dois anos já foi multiplicada por sete a cifra macabra.
02. O que ocorre com a população de Manaus da Amazônia é um
crime contra a humanidade. Pessoas morrerem nos hospitais e em suas
casas por falta de oxigênio é algo inominável. O Polo Industrial de Manaus
está entre os maiores do Brasil. A despeito da reprimarização em curso, o
Brasil ainda figura entre as economias mais industrializadas do mundo.
Mas não há oxigênio em Manaus. A população de Manaus morre asfixiada,
sem poder respirar, ao lado de um Polo Industrial com capacidade instalada
para atender demandas cujo nível de sofisticação nem de longe é
comensurável à técnica de armazenamento de oxigênio.
03. O registro que o médico e pensador social Djalma Batista faz da
Amazônia, cuja “terra é substancialmente índia na sua alma e muito no
aspecto de seus habitantes”, continua verdadeiro para Manaus. Mas a parte
índia de Manaus é a que menos pode respirar. Para Manaus, o capital
biocida e etnocida, além da pandemia de Covid-19, que mata pela falta de
ar, pela impossibilidade de respirar, também trouxe a impossibilidade de
soprar o ar da vida nas vidas asfixiadas. Em Manaus morre-se duas vezes.
A quem recorrer? O relato bíblico do Gênesis associa a vida ao espírito
soprado nas narinas do homem. Mas o que Deus fez o capital sufoca.
04. Como se tratava de matar em série, as empresas que supriam os
gases envenenados da usina de morte em Auschwitz nunca negligenciaram
o planejamento. Sempre havia gases em excesso. Por se tratar de salvar
vidas, na Manaus assolada pela pandemia de Covid-19, nesse janeiro de
2021, Auschwitz opera então pelo reverso: promove-se o planejamento da
escassez. Mata-se também em série, mas agora pelo corte dos dutos de
oxigênio e, desse modo, por falta de ar, Manaus se transformou num tipo
de Auschwitz pós-moderna do século XXI.
05. Há 185 anos, em 1836, os Cabanos irredentos chegaram a
Manaus, 35 anos antes de Paris ser tomada pela Comuna libertária. As
forças do capital, extrativista em Manaus e industrial em Paris, reagiram
com precisão bélica e reacionária e sufocaram dois movimentos
paradigmáticos da resistência proletária e popular. Entre o final do século
XIX e início do século XX a elite, com poucos sinais do que exige o
conceito, porque mais extrativa do que intelectual, alimenta Manaus com o
sonho traficado de convertê-la em Paris dos Trópicos. Atraída pelas luzes
sombrias do neoliberalismo, a Paris dos Trópicos cede lugar ao sonho
consumista da Miami Tropical.
06. O arrivismo econômico, político, cultural, estético – que até hoje
deita raízes e comanda os destinos da Polis cujas elites se envergonham de
seu rosto índio e caboclo –, abandonou a Paris dos Trópicos a partir de
1912, quando se inicia a decadência irreversível da riqueza gomífera
produzida à custa da acumulação primitiva e da mais brutal exploração do
trabalho registrada nas terras da Hileia. Diz o texto bíblico que um abismo
chama outro abismo. Seis anos depois da decadência iniciada em 1912,
Manaus é avassalada pela Gripe Espanhola, que antecipa em um século a
pandemia de Covid-19. A Gripe Espanhola foi o projeto distópico que
lançou as bases estruturais para a recepção da pandemia em curso do ano
(ainda) coronavirano de 2021. 2020 migrou inteiro para 2021 e a ele
adicionou a novidade regressiva de câmaras sem oxigênio a inferno aberto.
07. 13 de janeiro de 2021: refazendo a ponte militante e
revolucionária com os Cabanos de 1836 e com a Comuna de 1871, uma
Coluna de militantes de movimentos sociais, sindicatos, associações,
coletivos, centrais e partidos, impedida de constituir-se presencialmente,
reúne-se por meio remoto e funda, em Manaus, com espírito de
solidariedade classista, a FRENTE CABANA EM DEFESA DA VIDA
(FreCab). Por meio de um encontro mediático-coletivo, a FreCab foi
oficialmente lançada nesse sábado, 16 de janeiro de 2021. A FreCab nasceu
como uma Frente Emergencial formada por trabalhadores para enfrentar
coletivamente o obscurantismo e o desmonte de direitos sociais
conquistados pela classe que vive do trabalho. Além de manter viva a
memória da luta nos cabe manter viva a luta que travamos até aqui, esta
sim, digna de fazer parte de nossa memória coletiva e da história. Aos
agentes da morte restará a lixeira da história. A saída é lutar, porque sem
luta saída não haverá.
* José Alcimar de Oliveira, integrante da FreCab, é professor do Departamento de Filosofia da
Universidade Federal do Amazonas, teólogo sem cátedra e filho do cruzamento dos rios Solimões e
Jaguaribe. Em Manaus (sedenta de ar e de vida), AM, aos 17 dias de janeiro do ano (ainda)
coronavirano de 2021.