JURISTAS DEFENDEM SUSPEIÇÃO DE MORO E ANULAÇÃO DE PROCESSO CONTRA LULA
Dono de uma retórica eloquente, que ficou célebre durante o processo de cassação da ex-presidente Dilma Rousseff em 2016, Streck defende no livro que a parcialidade de Moro ficou “cuspida e escarrada” – um trocadilho para a expressão esculpida em (mármore) carrara – quando o então juiz da Lava Jato divulgou as conversas grampeadas entre Lula e Dilma, em março de 2016. O diálogo precipitou o processo de impeachment de Dilma, que seria sacramentado cinco meses depois.
“A divulgação das conversas derrubou a presidente. Depois disso, a parcialidade de Moro ficou tão evidente que já ali deveria ter sido impedido. Mas o STF falhou”, diz o jurista ao comentar o lançamento do livro, que está disponível para download gratuito. Desde a sexta-feira, 31 de julho, quando o acesso ao livro foi liberado, já foram baixados mais de 150 mil exemplares da obra. Sinal de que o assunto está longe de ser encerrado.
Isso porque tramita no STF um habeas corpus (HC) que pede o reconhecimento legal da suspeição do ex-juiz Sérgio Moro no caso do tríplex, o que, de acordo com o artigo 564 do Código Penal, levaria à anulação do processo que condenou Lula a 12 anos e um mês de reclusão. Os ministros Edson Fachin, relator da Lava Jato no Supremo depois da morte de Teori Zavascki em 2017, e Cármen Lúcia já votaram contra. Mas um pedido de vista do ministro Gilmar Mendes paralisou a análise.
40 articulistas debatem fatos e argumentos
O livro, organizado pelo também advogado Marco Aurélio de Carvalho, um dos fundadores da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD), reúne um time de 40 articulistas – os dois incluídos – para debater com fartura de fatos e argumentos o delicado tema que perpassa direito e política. O resultado é um compêndio sobre a fragilidade das garantias legais que deveriam proteger qualquer cidadão brasileiro contra a fúria dos interesses políticos ou morais.
“Moro sempre teve respaldo nas instâncias superiores, por isso pintou e bordou. Sempre usou, e eu disse isso para ele em um debate em São Paulo em 2015, o target effect: ele primeiro atira a flecha e depois pinta o alvo em torno dela. Assim, nunca erra. Pode colocar aí que a autoria do target effect é minha”, brinca o jurista.
Mas, para Streck, a suspeição de Moro é uma tarefa difícil: “Para um juiz ser suspeito, no Brasil, ele tem de ser inimigo capital do réu. Não basta ser inimigo, tem de ser superinimigo. É bizarro isso. Na Europa não é assim. Lá, as decisões de Moro seriam anuladas facilmente”, diz.
Mesmo assim, o livro defende a anulação do processo, independentemente das repercussões políticas que possa ter. “O direito, quando trata de garantias, não pode ser analisado de forma consequencialista. Claro que todo o processo deve ser declarado nulo. A repercussão disso? E a repercussão de 100 mil mortos (na pandemia de coronavírus)? É grande? Pequena? Anular um processo é algo que fará com que haja passeatas na rua? Bom, se sim, então não estamos nos acostumando com a democracia”, define.
No Brasil, entretanto, mesmo um conjunto de reportagens como a série do The Intercept Brasil, que revelou no ano passado os bastidores da operação Lava Jato em chats de vários grupos do Ministério Público Federal, não é suficiente para demonstrar a parcialidade de um magistrado – segundo as apurações, Moro atuava como juiz e acusador, orientando os procuradores, cobrando resultados e até antecipando decisões. Por que as evidências de parcialidade não são suficientes para provar a suspeição de Moro?
“Neste país polarizado, a malta vibra com gol de mão e depois se queixa que perdeu a partida justamente por causa de um gol de mão. Falhamos lá atrás. Na área jurídica, formamos uma multidão de reacionários que odeia as garantias. Há negacionistas de vacina, de vírus e também há, infelizmente, negacionistas do direito. Onde foi que erramos? Temos de procurar o paciente zero dessa pandemia jurídica”, responde Streck.
O grupo Prerrogativas reúne professores, advogados, juízes, promotores, defensores, sindicalistas, integrantes de ONGs, jornalistas. Ao todo, são contabilizados 256 membros. O lema do coletivo, segundo Streck, é: há autoritarismo? Somos contra. “O grupo alcançou institucionalidade ao atuar em várias frentes. Nas ações diretas de constitucionalidade (ADCs) sobre presunção de inocência, por exemplo, todos os protagonistas são do Prerrogativas”, informa. O patrono é o advogado Sigmaringa Seixas (1944/2018), constituinte de 1988 e consultor da Anistia Internacional no Brasil.
O livro também afirma que uma parte da população, incluindo a comunidade jurídica, sabe o que Moro fez. E não virou herói justamente por que mandou às favas o devido processo legal que prende um ladrão de galinha e procrastina ad eternum um colarinho branco?
“A Lava Jato virou uma marca. As pessoas têm razão quando apoiam a operação porque, historicamente, somente os pobres iam para a cadeia no Brasil. No imaginário social, a Lava Jato é um bálsamo. Sei disso. O problema é que isso tudo custou muito caro. O custo econômico para o país não compensou. Só a Petrobras já mostra isso. Outros países combateram a corrupção sem quebrar as empresas”, responde o jurista.
Garantias processuais e democracia
Mas o jurista lembra de um outro fator negativo: o custo simbólico da Lava Jato. “No Brasil pouco se acredita em garantias. É que se espalhou, com a ajuda da grande mídia, que habeas corpus é coisa para bandido, quando em qualquer faculdade a primeira coisa que deveriam ensinar é: direito é para afirmar garantias. Aqui, se você falar a favor da Constituição é comunista”, ironiza Streck.
“Moro aproveitou esse anseio. Houve enormes falhas da esquerda, que apostou muito na politica e pouco no fator jurídico. Isso foi errado. Nesse espaço ‘vazio’, quem se aproveitou foi um imaginário moralista que fez um jargão que acabou ‘pegando’: os fins justificam os meios. Ou corrupção faz mal. Ora, ninguém é a favor da corrupção, a não ser o corrupto. Mas Moro e seu grupo se adonaram da ideia de combate à corrupção e isso se tornou um fenômeno performático”, lamenta.
E conclui: “Sem garantias processuais, não há democracia”.