ROBERTO BUENO: BRASIL VIVE SOB REGIME MILITAR, EM TRÂNSITO PARA DITADURA ABERTA
Por Roberto Bueno*
Um dos princípios básicos de um Estado democrático de direito é de que os poderes devem estar separados, e que a concentração deve ser evitada para tangenciar circunstâncias de que a eventual hipertrofia, por exemplo, do Poder Executivo, ocasione regimes de força.
Nos termos da clássica formulação da tripartição dos poderes corresponde ao Poder Judiciário a competência de dirimir os conflitos sociais, não sem que muitas sejam as críticas derivadas de seu caráter aristocrático e possíveis debilidades quanto ao processo de acesso à carreira.
Desenhado um determinado sistema compatível com a reputação democrática, sem embargo, no momento em que uma decisão judicial é tomada não há alternativa senão cumpri-la ou, quando couber, contestá-la judicialmente.
O grave fato que ocorre neste dia 22.06.2020 é que o Ministro Celso de Mello tomou decisão de solicitar à PGR (Procuradoria-Geral da República) a apreensão dos telefones celulares do Presidente Jair Bolsonaro e de seu filho, o Vereador Carlos Bolsonaro, com vistas a apurar a autoria de fatos supostamente delituosos denunciados (notitia criminis).
Contudo, o General Augusto Heleno, Chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), mas a isto resolveu enfrentar-se através de nota enviada à imprensa a sua inconformidade, apontando para o descumprimento da decisão judicial em face das alegadas consequências que isto traria para o Estado, que seriam, aduz, “imprevisíveis”.
O Gen. Augusto Heleno considera que a decisão judicial é “inconcebível”, “inacreditável”, “de consequências imprevisíveis”, enfim, uma “afronta” para a Presidência, mas não pareceu tão preocupado quando foram encontrados nada menos do que 39 kg de cocaína em avião da comitiva presidencial em deslocamento para a Espanha, país em que um membro militar da comitiva brasileira foi processado, julgado, condenado e cumpre pena.
O Gen. Augusto Heleno, aparentemente, tampouco parece considerar uma “afronta” para a Presidência da República o fato de que as milícias tenham diversos contatos publicamente documentados com o seu titular e grande parte da família, até mesmo vizinhança física, que tenham amigos e contatos frequentes nos seus gabinetes.
O Gen. Augusto Heleno, aparentemente, não considera uma “afronta” para a Presidência da República que milicianos condenados por homicídio e seus familiares tenham relações íntimas com a família da Presidência, quando não com a própria, a ponto de receber a mais alta distinção do Estado do Rio de Janeiro.
Não, ao que parece, nada disto importa muito, mas o Gen. Augusto Heleno considera uma “afronta”, e gravíssima, uma decisão judicial que tem por objeto a investigação de algum possível ilícito.
Será que para o Gen. Augusto Heleno a “afronta” é investigar possível ilícito e não o flagrante do ilícito?
O que realmente significa um risco para a “segurança institucional do país”, investigar possível ilícito ou deixá-los ocorrer livremente?
Não é possível relevar em nenhum momento que, salvo melhor juízo, na concepção do Gen. Augusto Heleno, não implica riscos para o país que o assassinato da Vereadora Marielle Franco (PSOL) e de seu motorista Anderson Pedro Gomes, entre e saia ano sem solução, mesmo após as Forças Armadas terem realizado intervenção no Rio de Janeiro, bem como insolúvel permaneça o “caso Queiroz”, cujas conexões com a família Bolsonaro são públicas e também bem documentadas de todas as formas.
E o assassinato do miliciano Fabiano, na Bahia, só em uma casa cercada por policiais? E o sumiço da viúva? E os vários celulares de Fabiano?
Nada disto é uma “afronta” nem pode ser classificado como “inconcebível”, “inacreditável” ou “de consequências imprevisíveis” segundo a régua política do Gen. Augusto Heleno?
E a indústria de notícias falsas (“Fake News”) e o “gabinete do ódio” que destrói reputações e veicula milhões de mensagens falsas e deteriora o ambiente político do país? Isto também não pode ser classificado como “inconcebível” ou “inacreditável” pelo Gen. Augusto Heleno?
Por qual motivo alguns temas que envolvem a Presidência da República neste país não são alvo do interesse dos organismos oficiais de investigação?
As respostas parecem óbvias.
Até quando as autoridades evitarão oferecer resposta objetiva a estas questões é o que nos dará a nota do prolongamento deste regime militar.
A posição pública adotada pelo Gen. Augusto Heleno relativamente a solicitação do Ministro Celso de Mello está apenas a atestar publicamente o que já venho afirmando há meses em diversos artigos: o Brasil vive sob um regime militar, e o trânsito para a ditadura aberta é questão de tempo, exceto se revertido através de forte pressão política popular, pois as Forças Armadas hoje no poder não cederão de outro modo.
Já deveríamos saber que quando permitimos que homens armados tomem o poder apenas sairão dali quando lhes convier, e não serão decisões judiciais que lhes demoverão da ideia de manter os seus cargos e de parentes, senão, reitero, a correlação de força política que se estabeleça na sociedade.
A posição assumida pelo Gen. Augusto Heleno passa a nítida impressão de desejar criar um núcleo duro de poder ao qual nenhum órgão de investigação ou apuração possa acessar.
Mas por qual motivo tamanha blindagem? Quem tem medo? De que tem medo? Por qual motivo tem medo? Quantos têm medo?
Seja como for, nestes termos ocorreria uma blindagem em último grau, o que configura o desenho institucional típico de um poder ditatorial, em que o Poder Judiciário não pode atingir, e cujas ações e decisões, portanto, permanecem no campo da intangibilidade e inquestionabilidade.
O princípio republicano e democrático de que todos estão sob o alcance da lei não interessa ao regime que o Gen. Augusto Heleno parece defender, que em tudo se parece ao de uma ditadura.
Hoje, portanto, ao apontar horizonte de descumprimento de uma decisão judicial da mais alta Corte do país, o Gen. Augusto Heleno cruzou inexoravelmente o rubicão, sendo esta a real fonte de instabilidade institucional.
A última estação antes da ditadura aberta é o desrespeito às decisões judiciais ou a submissão apenas àquelas que interessam ao regime.
Agora já não haverá retorno e, assim, ou as instituições tomam imediatamente de defender a Constituição e a competência do STF ou já não haverá chances de que possamos restituir, sequer a médio prazo, o nosso já profundamente combalido resto de democracia.
*Roberto Bueno é Professor universitário, Doutor em Filosofia do Direito (UFPR), Mestre em Filosofia (Universidade Federal do Ceará / UFC), Especialista em Direito Constitucional e Ciência Política (Centro de Estudios Políticos y Constitucionales / Madrid), Professor Colaborador do Programa de Pós-Graduação em Direito (UnB) (2016-2019) e Pós-Doutor em Filosofia do Direito e Teoria do Estado (UNIVEM).