A IMPRENSA ESPORTIVA E A INTELIGÊNCIA DO JOGADOR
A inteligência é a faculdade de organizar os estímulos recebidos pelo sistema nervoso, transformando-os neurologicamente numa “interpretação” dos arredores e do mundo em si. Inteligir significa organizar e compreender o mundo onde se vive. Daí poder se afirmar que todas as pessoas são intelectuais. Dominam esta capacidade, mesmo aqueles que são considerados pela medicina e pelo senso comum, portador de necessidades especiais.
No ‘mundo’ futebolístico, predomina um enunciado social do chamado senso comum: o jogador de futebol é, invariavelmente, desprovido de intelecto. Equívoco neurológico, e discriminação de classe. É evidente que os jogadores de futebol não são mais ou menos inteligentes que ninguém. A questão é que eles não carregam os signos constituídos da classe média, mesmo que eventualmente algum deles se destaque no paupérrimo futebol brasileiro, e consiga a ascensão financeira, que nem sempre vem acompanhada, de imediato, da ascensão social.
A imprensa esportiva, quando entrevista um jogador, adora expôr esse ódio de classe. Os jogadores, se são medianos com a bola no pé, com o microfone são ainda piores. Sintoma de uma educação que não vivifica e não auxilia na produção de dizeres produzidos a partir da razão, e de uma sociedade segregadora, a qual se reflete no futebol. Daí a imprensa esportiva cair no seu próprio engôdo: se considera superior intelectualmente aos jogadores.
O DRIBLE DOS ‘ESTRANGEIROS’ E O COMPLEXO DE INFERIORIDADE DO FUTEBOL BRAZINIQUIM
Quando um jogador brasileiro vai trabalhar na Europa, acaba adquirindo, em maior ou menor grau, alguns elementos de ordem dos signos constitutivos da chamada ‘boa educação’. Em alguns casos, como o de Raí, por exemplo, há um envolvimento autêntico e efetivo com as artes, com a cultura artística e social do local (Raí viveu em Paris por vários anos), que auxilia o jogador-cidadão a compreender, pelo movimento de reflexão, outros mundos possíveis, o que lhe permite compreender mais amplamente aquele de onde saiu. O mesmo não aconteceu, por exemplo, com o bom menino Kaká, que mesmo em contato com outras ambiências – e algumas nem tanto… – não conseguiu ultrapassar o enunciado patricarcal-familialista-dogmático, embora ainda sonhe ser Raí. Ou Robinho, ou Luís Fabiano… Estes não fizeram bons encontros, não produziram outras afecções com o corpo Europa.
Daí a tranquilidade mediocrizante da imprensa esportiva: é possível manter, com esses jogadores, o jogo do não-jogar. As mesmas perguntas, as mesmas respostas: nenhuma, nem outra. Jogam na Espanha, Itália, Inglaterra, mas jamais saíram do Brasil.
No entanto, quando a imprensa encontra um jogador que não aceita este não-jogo, que sabe articular as palavras, emitir uma sentença que expresse uma operação cognitivo-epistemológica simples, mas resultado de sua ação e reflexão no mundo, quem dança e leva um drible desconcertante é essa mesma imprensa. Foi o caso do jornal Diário do Amazonas, de ontem, segunda-feira, em sua manchete esportiva:
“ESPANHÓIS SE COMPARAM A BRASIL E ARGENTINA”
A reportagem foi feita a partir de uma declaração do atacante espanhol Fernando Torres:
“A seleção [espanhola] tem fome de títulos. Vamos ver até onde chegamos. Os adversários vão nos conhecendo, querem fazer marcações individuais e, por isso, fica mais difícil ganhar as partidas. Para eles, vencer a Espanha é como era antes bater Brasil ou Argentina”
Drible epistemológico de Fernando Torres na redação do esportivo manoniquim – e em quantos mais tenham errado na interpretação do texto, matéria de 1a série do ensino fundamental, o que vale é que o jornal repetiu o erro. Fernando Torres compreendeu que o futebol mudou, menos para a Espanha, que exprime em sua seleção e com o time do Barcelona, ocasionalmente, a fusão entre o belo futebol (haverá outro? Cremos que não.), a ofensividade e a efetividade. Não por acaso, o clube catalão conquistou a tríplice coroa encantando os olhares mendicantes do bom futebol, e a Espanha transformou o combalido torneio da Eurocopa em um festival das belas artes com a bola nos pés.
Coisa que brasileiros e argentinos há muito não o fazem, nem com Dunga, nem com Maradona, como bem observou o atacante espanhol, e que não sacou o jornal. Deficiência intelectiva, demonstrada pela incapacidade de coordenar e organizar o real para além das armadilhas dos clichês.
Neste ponto, o jornal pode respirar aliviado, ao menos. Está no mesmo nível que a rede Globo, quando faz sempre a mesma pergunta para um sorridente Robinho, Luis Fabiano ou Kaká, recebendo, invariavelmente, a mesma resposta. O telespectador, irônico, sorri.