O BARULHO DOS AFRICANOS E O SILÊNCIO DOS ‘BOLEIROS’

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A relação do homem com o tempo não é uma relação direta. É necessário ao homem, para suportar o real, estabelecer com ele uma relação de territorialidade: organização dos signos e elementos (corporais e incorporais) de modo a estabelecer não uma referência de ordem estática (identidade, pertencimento), mas uma linha a-significante, que no entanto remete a uma territorialização que permite o estabelecimento de um modo de existir, em toda a sua complexidade.

A cultura africana têm, entre diversas outras culturas, uma relação de proximidade e intimidade singular com os sons e ritmos. Longe de um mimetismo da natureza, assim como os povos nativos da Amazônia, por exemplo, os africanos compõem com os objetos novas formas e corpos, outros afetos e perceptos. Um organizador semiótico que produz territórios existenciais, que diferentemente de uma identidade ou de uma subjetivação, não é estática e nem pode ser capturada. Daí a explosão transbordante dos sons africanos em todos os outros continentes, com toda a complexidade e riqueza: os atabaques e os orixás que o digam…

O SOM QUE INCOMODA O MERCADO DA BOLA

Em meio a um torneio caça-níqueis, menos futebolístico que financeiro, são elas que estão em voga: as vuvuzelas. Não que sejam novidade no mundo do futebol. Desde a década de 60 elas estão aí, pelos estádios. Mas, com a força do capital, chegaram à África e compuseram com a musicalidade dos africanos uma poderosa melodia.

Contam que jogadores, técnicos e equipes de tevê e rádio presentes à África do Sul têm reclamado do barulho ensurdecedor das vuvuzelas, sopradas desde antes até muito depois das partidas da Copa das Confederações. Mais ainda quando um time do continente, como o Egito, apronta, como o fez, para cima de Brasil e Itália.

Estranhamento em realidade estranho, se considerarmos que outros “ruídos”, bem mais daninhos ao futebol e aos jogadores são ignorados ou bem suportados. Os jogadores, submetidos ao ritmo alucinante de treinamentos, concentrações, confinamentos, pressão física e psicológica, alterações de fuso horário, rotina determinada por outrem, sem direito a férias, jogando um torneio posicionado cirurgicamente nas semanas que sucedem o término da anterior temporada européia (onde jogam a maioria deles) e precedem a seguinte. Nenhuma reclamação. Igualmente, o ruído estranho ao futebol como produção ludoestética do homem, ao transformar o jogo em mercadoria, tentando interditar o intempestivo. O anódino circo do futebol se incomoda com um objeto que faz parte do bestiário deste mesmo mercado (alguém levou as ‘vuvuzelas’ para a África com o claro intento de lucrar), e que encontrou numa composição entre objeto e humano, uma produção de som que transborda a ordem do futebusiness. Por que os jogadores não se incomodam com o estranho ruído do silêncio que é a ausência do futebol (e a presença saturada do negócio, do futebusiness) num torneio internacional de seleções? Por que à imprensa esportiva não incomoda o silêncio dos jogadores das chamadas grandes potências (Brasil, Itália), mais preocupados com o gerenciamento da carreira, e que encaram o torneio como uma obrigação contratual, em contraposição aos jogadores, por exemplo, de um Egito, que correm, brigam e se entregam à disputa do jogo sem a intromissão de elementos exógenos?

Enquanto os ‘boleiros’ não ouvem o ensurdecedor silêncio do futebol que lhes falta, terão de se contentar em se incomodar com as vuvuzelas. Pode ser que, em termos de espetáculo, só reste ao torcedor mirar a alegria dançante e contagiante da torcida africana, ainda que seja pelo mistificado olhar do pseudo-antropólogo do exótico.

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