UMA DES-APROVAÇÃO DO SISTEMA EDUCACIONAL
“João Grilo olhou de um lado
Disse para o diretor:
— Este mestre é um quadrado
Fique sabendo o senhor
Sem dúvida exame não fez
O aluno dessa vez
Ensinou ao professor.”
(do cordel Proezas de João Grilo,
de João Ferreira de Lima)
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Não é de maior importância dizer que essa prova foi realizada na Escola Estadual Cleomenes do Carmo Chaves (Manaus-Amazonas-Brasil), assim como o nome do aluno só o colocamos a pedido do próprio. Mais do que a comprovação verossímil de um fato, a este bloguinho interessa sim a subjetividade envolvida na questão, que vai muito além desse fato, expondo de maneira irônica, transgressora, selvagem, desconcertante o antiquado sistema educacional público e privado do Amazonas e de todos os estados brasileiros ― assim como o de muitos outros lugares de quando ainda nem existiam escolas no Brasil ―, depauperado materialmente e, principalmente, de concepções educ-ativas libertadoras.
A ESCOLA COMO ESPAÇO DE CONFINAMENTO
“Provavelmente toda educação consiste em duas coisas: em primeiro lugar conter o assalto impetuoso da criança ignorante para a verdade e em seguida iniciar, de modo suave, imperceptível, gradual, a criança humilhada na mentira.” Franz Kafka
O filósofo Michel Foucault diz ser esse sistema tão frágil em sua estrutura que qualquer pequeno sopro o faz desmoronar, por isso ele se faz revestir de tantos aparatos de repressão de todas as formas (castigos físicos… sanções disciplinares… câmeras de segurança) numa linha de subjetivação dura que vem desde o nascimento da escola segundo as regras do exército napoleônico, como analisa o filósofo francês no seu Vigiar e Punir.
A ineficiência da escola começa pela sua simulação e falta de relação com o mundo prático. Por isso já houve professor a afirmar em alto e mau som: “Na escola você é aluno, seus problemas ficam do portão pra fora”, quando se sabe que esse dissociamento paranóico é impossível. Se existem conflitos familiares, vão prejudicar o processual de aprendizagem de uma criança. Se o aluno é explorado em sua força de trabalho, não terá as energias físicas e emocionais para envolver-se livremente com o conhecimento. E, como diz Marx, “só existe educação com liberdade e envolvimento”. Acontece que a escola não precisaria ser nenhuma panacéia — como é empregada nos discursos de poder —, bastaria apenas ser lugar de pensamento e práxis para para modificar, geofilosoficamente, a realidade social. Mas acontece mais ainda de a escola ser justamente o principal “aparelho ideológico do Estado”, como dizia Louis Althusser, e apenas confirme como verdade e realidade essa poeira ideológica que se intercambia com outros aparelhos na linha dura das violentações institucionais.
“O indivíduo não cessa de passar de um espaço fechado a outro, cada um com suas leis: primeiro a família, depois a escola (“você não está mais na sua família”), depois a caserna (“você não está mais na escola”), depois a fábrica, de vez em quando o hospital, eventualmente a prisão, que é o meio de confinamento por excelência.” (Conversações, Gilles Deleuze)
Como não é um espaço dinâmico, autêntico e espontâneo, ao contrário, sendo de cerceamento e captura, as relações secretário-diretor-professor-aluno serão hierárquicas e mantidas pela imposição e pela chantagem. Embaixo, nessa linha vertical, os alunos, que já tiveram seus ímpetos, em tempos não muito distantes, atrás da porta da sala de aula, arrefecidos nas torturas do milho sob os joelhos, suportarão o peso desse sistema, agora sob a forma da chamada e da prova. Como muitos não se tornaram crianças de cabelos brancos, como diria Freud, muitas serão as formas de tentar escapar, que vão desde os assassinatos em massa dentro de sala de aula ― Columbine! ―, passando pelas depredações do patrimônio público ― escola paulista destruída por crianças (ex-alunos) entre 8 e 13 anos ― até o uso do humor e da inteligência como força de demonstração das falseações do saber-poder escolar ― as respostas à prova acima, em Manaus.
UM CASO DE PROVAS E CONTRA-PROVAS
“Se as questões mínima dos alunos fossem ouvidas, era o bastante para se explodirem todos os centros de ensino.” (Michel Foucault)
Alessandro, um rapaz forte, sorridente, alegre, zombeteiro, irônico, sagaz, falante, aluno do 3º Ano do Ensino Médio, deu respostas às questões de uma prova que, mais do que desrespeito ou afronta nas respostas, mais do que um mero caso individual, são enunciados de uma contra-prova que desmontam um sistema educacional decadente e ultrapassado, por isso este bloguinho publica essas questões e entra numa linha de proximidade filopedagógica.
O que significa a palavra Feudalismo?
R= Eu sei lá o que significa Feudalismo.
A escola tradicional é o lugar, por excelência, de moradia eterna da causadora de todos os sofrimentos do humano demasiado humano (Nietzsche): a Memória. Na verdade o que se tem aí é apenas um simulacro da Memória. Acumulação de informações a partir do “decoreba”. Didática do tatibitate. Ora, por qualquer estudo técnico-superficial sobre as questões mentais, sabe-se que a memória “grava” todas as experiências que passaram pelo Sistema Nervoso Central ― até Deus, como diria Nietzsche, se por aí passasse, existiria ―, mas ela tem seu próprio funcionamento e nem sempre depende do bel prazer da consciência, já que a grande maioria dessas experiências (e toda experiência é única e nunca se repete) escapa à memória-lembrança (Henri Bergson) e se aloja no inconsciente. As anêmicas pesquisas escolares (“control C control V”), essas é que não passam mesmo por quaisquer fagulhas de sinapse neuronal. E mesmo que Alessandro “soubesse”, que importância tem essa informação se não for relacionada às principais características do Feudalismo ― transcendência e representação (Toni Negri) ― e a forma como elas são atualizadas, depois de um período de imanência, na modernidade capitalista? Isso não somente porque ainda se pode ver em qualquer interior do Amazonas relações de servidão, mas é que há um vínculo entre escravo-servo-trabalhador, e a própria família-nuclear-cristã-burguesa carrega o germe feudalista. Sem levar em conta essas questões práticas, pode-se saber sobre a Revolução Francesa, co-secante, verbo to be or no to be, novas regras ortográficas, “pode-se aprender durante todo o dia sem por isso ser ensinado”, como diz a filósofa judia-alemã Hannah Arendt.
Quem eram os mansos, e o que faziam?
R= Ora, os mansos eram os que não brigavam não faziam bagunça não se metiam em brigas. Eles não faziam nada. Por acaso a senhora já viu algum manso fazer alguma coisa.
Sabemos tanto quanto Alessandro quem são os mansos. Sabemos que qualquer pesquisa capivarol no Wikipédia pode nos apresentar o objeto em segredo da questão, mas preferimos por não saber tudo da cultura inútil. Foram-se as décadas que um professor se dava o privilégio de ter o exemplar de um livro comprado no sul do país, que ninguém mais tinha em Manaus, podendo por isso arrotar abacaba transgênica e se passar por intelectual. Haviam professores que acreditavam estar revelando o grande busílis do mundo no quadro quando ali na sala ao lado tinha outro fazendo a mesma coisa. É a grande confusão entre raciocínio e inteligência. Quanto maior o blefe das respostas-prontas, mais inteligentes parecem. Há quem ainda acredite?
Alessandro não é manso. Sabemos que do ponto de vista filosófico ele está certo. E sua resposta demonstra sua postura em um mundo onde só os mansos de coração herdarão o reino dos céus, nosotros teremos que competir pela subvivência ou formaremos novos tipos de comunidade, como fizeram muitos vagamundos na época do Mercantilismo, como antes havia feito Jesus Cristo (não o de Paulo, mas o filho de Maria), que escapem às armadilhas, prêmios ou sanções, do poder escravagista-feudal-capitalista.
Quais eram os bens do senhor feudal?
E como é que eu vou saber o que esse filha da puta tinha, se eu não tenho o assunto nem livro, e a senhora nem deixou eu fazer com quem tinha o assunto.
Pela memória-lembrança, Alessandro não lembra, mas pela memória-contração (outra vez Bergson), que aproxima o passado com questões atuais, pelo palavrão empregado em referência ao senhor feudal, ele sabe de todo autoritarismo de um senhor feudal. E há professores-senhores feudais. Ele pressente e se rebela contra um sistema que continua mantendo um autoritarismo nas relações, impedindo que se estabeleça um ambiente sadio, fundado no diálogo e no debate livre de idéias, sejam quais forem, desde que digam respeito à coletividade e, principalmente, que atravesse, bergsonianamente, para além da memória mecânica, o Acontecimento e o leve num movimento criador da Memória Mundo (Deleuze).
NOVO ENEM, NOVO EDUCARE, NOVO ALUNO
“FORÇA E UM BELO SOM
COMO O DE UM ARCO RETESADO
EU QUERO VIVER ASSIM
ATÉ O DIA DA MINHA MORTE.”
(O Arco, cinema do sul-coreano Kim Ki-Duc)
O culto ao simulacro da memória vem desde a Idade Média, quando aqueles que liam os pergaminhos decidiam as “verdades” que deveriam ser ditas e as que deveriam permanecer nas trevas, escondidas dos olhos e ouvidos dos ímpios. Na modernidade, com o crescimento vertiginoso das cidades e a universalização progressiva do saber, até mesmo devido à necessidade de novas formas de coação, a linguagem como representação do mundo vai reorganizar a transcendência para docilizar a multidão, levando-a, a partir da idéia de povo, a tornar-se algo uno e manobrável.
“A multidão é uma multiplicidade, um plano de singularidades, um conjunto aberto de relações, que não é homogênea nem idêntica a si mesma, e mantém uma relação indistinta com os que estão fora dela.” (Império, Toni Negri)
Embora há muito se apresentassem, teoricamente, no Plano Político Pedagógico de quase todas as escolas brasileiras palavras como “Construtivismo”, “Paulo Freire”, “avaliação contínua”, até então a escola tradicional, a partir da repetição-simulação, vinha consolidando essa docilização do corpo e da mente. A própria avaliação contínua, da forma que veio a ser empregada, acabou se tornando pior ainda para o aluno, que viu a grande, terrível e totalitária prova ser fragmentada em várias menores, todas ferindo a integridade dos alunos, causando-lhes medo, ansiedade, taquicardia, insônia, stress, etc. Microfascismos do cotidiano escolar. Nada de observação da totalidade existencial do educando. Foi preciso um torneiro-mecânico se tornar presidente para tentar desbloquear os afetos construtores e, na prática, aproximar a escola da comunidade e da vida.
Apesar da simplicidade do novo Enem, lançado pelo MEC no início do ano, de querer diminuir a recorrência ao decoreba e ligar o ato de educar com a realidade social e política, para que, independente da área, possa-se fundamentar uma ação, o MEC observou que a “formação de professores será entrave para implantação do novo modelo de ensino médio”. É que nunca houve em estados como o Amazonas, em capitais como Manaus, investimentos em trabalhos de formação que fizessem avançar (educare) a compreensão da relação entre escola e realidade. Ao contrário, esta apareceu sempre como um entrave para aquela. Mais difícil ainda será encontrar, tão afeitas que são ao blefe des-educativo, secretarias estaduais e municipais que compreendam essas questões postas na mesa sem trapaça.
É um problema que vai sendo enfrentado pela primeira vez na história brasileira em várias frentes com políticas públicas educacionais que atingem a escola básica e até tentam fazer vazar uma fresta de luz no buraco negro universitário.
A educação não é uma panacéia. É o aumento da potência de agir da cidade (Spinoza), e, por isso, necessita de outros educadores que joguem seus “segredinhos sujos” e lancem-se para questões mais vastas. De que adianta a Química isolada da questão do petróleo, da guerra? De que adianta o inglês obrigatório se não se observa a decadência do Imperialismo Americano? De que adianta a História se não se debate o fim da História? De que adianta a Biologia se não se observam as mutações e os controles que a microbiologia opera cotidianamente no próprio corpo humano? De que adianta a Geografia se não se observam na cheia amazonense a negligência governamental com a população ribeirinha? Língua Portuguesa… Filosofia… Literatura… Matemática… Cada qual na sua gaveta, como pretendia a velha psicologia da aprendizagem.
Além de tudo isso, uma outra postura educ-ativa, na forma de se relacionar, que faça do espaço da sala de aula um encontro com o olhar do outro. Como diz Hannah Arendt, só pode trabalhar na educação e ter filhos quem tem compromisso com os jovens. Alessandro relatou-nos que não respondeu à prova com raiva, apenas encarou como se conversasse, colocando as respostas da forma como fluíam a sua mente. Mas na escola é proibido palavrões, mesmo quando não são usados em tom ofensivo, como neste caso. É proibido conversar com o colega, é proibido inventar, é proibido discordar, é proibido beijar, abraçar, namorar — tem diversas escolas em Manaus, principalmente entre as particulares, que é proibido expressamente aos alunos se tocarem —, é proibido não saber o já posto…
Mas no aluno está a raiz do verbo latino “alere” (“Criar!”), e não de a-luno (“sem luz”), como muitos dizem. É preciso atualizar o conceito e, para isso, é necessário um novo educador. “É preciso esquecer para lembrar”, como diz Fernando Pessoa. É preciso destruir o espaço simbólico da escola, pois que, como diz Jules Celma no Diário de um Educastrador, “a destruição do espaço alienado passa por um uso fortemente distorcido de tudo aquilo que o compõe”. Não é levar a comunidade à escola, como repete a grande maioria ‘deplomada’ senso-comum. Nem se desfazer apenas do aparelho físico que, por sinal, está com os dias contados. Para além da clonagem do pensamento e da ação, é preciso fazer da escola uma cozinha, um tribunal, um campo de futebol, uma eleição, e, a partir da razão, do humor e da inteligência, aproveitar a diversidade dos saberes-práticas coletivos, desconstruindo os nós políticos-sociais e criar uma outra escola. Uma outra cidade.
“Quero ser um homem que fala com os lábios e as palavras de um deus. Quero criar obras que, desde a madrugada, trabalhem no aumento do dia, obras que alegrem o olhar de um deus à luz do sol.” (Zaratustra-Nietzsche)