PARA ALÉM DA DISCRIMINAÇÃO DISANGÉLICA DA CÂMARA MUNICIPAL DE MANAUS, A UTILIDADE PÚBLICA DAS AMAZONAS ÀS PROSTITUTAS DE MANAUS
Os corpos maus do Estado sem métodos e sem regras violentam a natureza humana (Deleuze), enrijecendo-se no preconceito, na discriminação, exclusão, prevalecendo a violentação que os corpos reativos buscam impingir aos outros para salvaguardar a sua falsa Lei moral. Assim pode ser entendida a posição reacionária (e poderia ser diferente?) da Câmara Municipal de Manaus ao negar para AS AMAZONAS – Associação das Prostitutas do Amazonas o certificado de Utilidade Pública.
Aí é hora de outros corpos entrarem numa proximidade que aumente a potência de um corpo de agir e entre num processual para construção de uma potência maior, democrática (Spinoza). Foi nesse sentido que a AFIN fez um Manifesto, e que também, na bela tarde do domingo passado, foi até a sede d’As Amazonas e lá conversou com Sebastiana, sua coordenadora, que falou sobre a história e o trabalho d’As Amazonas, analisou o ocorrido na CMM, discorreu sobre a hipocrisia da classe política, fez denúncias e, principalmente, demonstrou sua capacidade racional de perceber as questões sociais e políticas com lucidez, ao contrário dos vereadores, que são eleitos e pagos pela coletividade, a quem deveriam servir, independente de credo ou qualquer outra particularidade, de forma ética e imparcial. Mas aí já é querer demais do atual quadro da CMM; por isso, é melhor ouvir quem sabe do que está falando. Com vocês, Sebastiana…

As Amazonas faz parte da Rede Brasileira de Prostitutas. Em vários estados tem associação. Eu fui em um encontro agora em dezembro, no Rio, para o 4º Encontro de Prostitutas, e havia lá representados 17 estados. A nossa associação surgiu meio que por acaso. Dentro da nossa associação, nós somos 8 da diretoria, e o nosso estatuto exige que todas as mulheres da diretoria sejam mulheres prostitutas. Então, entre as prostitutas, a maioria das mulheres são leigas nesses assuntos, a maioria não conhece esse lado. Inclusive eu, que hoje sou a coordenadora, eu não conhecia nada. Aí veio um pessoal do Pará, o GEMPAC – Grupo de Mulheres Prostitutas do Estado do Pará, aqui em Manaus, eles foram nos pontos de prostituição e nos conhecemos. Eles vieram fundar essa associação aqui. Eles vieram, deram esse passo muito importante, mas entregaram e foram embora, e a gente ficou sem saber como que fazia, por onde ia começar, todas essas questões burocráticas. Saímos procurando saber das coisas pra ver como é que a gente ia agir. Fizemos reunião com a diretoria, estudamos o estatuto.
A TEMÁTICA PÚBLICA DAS AMAZONAS
Aqui em Manaus, a prostituta precisa de um órgão que proteja ela. A gente tenta combater a prostituição infantil. Combater a prostituição infantil e dá proteção àquelas mulheres que já estão lá, esse é o nosso trabalho em primeiro lugar. O nosso interesse é prevenir (olha, isso aqui tudo é preservativo). Basicamente a gente trabalha com três temas: História de Vida, Direitos Humanos e Prevenção. Esse título de utilidade pública ia ser (e vai ser, porque a gente vai lutar ainda) muito importante. Ia facilitar pra gente ter, exigir alguma ajuda. Os vereadores disseram lá que nós já temos ajuda do Estado. Que ajuda? A única ajuda que nós temos é somente os preservativos, que nós entregamos duas vezes por mês, 60 preservativos para cada menina. Nós temos 321 mulheres cadastradas. A gente precisa de ajuda pra expandir nosso trabalho, porque o horário que a gente mais trabalha é depois das 9h da noite. É a hora que elas saem todas pra rua. Fizemos o mapeamento dos principais pontos. E, aliás, dentro de Manaus, em qualquer esquina você encontra menina se prostituindo. E não tinha ninguém que se manifestasse, que desse uma palestra, e esse é o nosso trabalho. A gente precisa fazer alguma coisa, porque está se expandindo demais. Você sai de madrugada, depois de meia-noite, a cidade está empestada de prostitutas, e esses vereadores não olham por esse lado. Por isso, essa utilidade pública ia ajudar a gente, porque a nossa intenção é montar uma cooperativa, colocar essas mulheres pra fazer curso profissionalizante, pra elas aprenderem a fazer alguma coisa pra ter seu dinheirinho próprio, inclusive, se for o caso, não precisar vender seu corpo. Essa é a nossa intenção. Mas todo mundo nos enganou.
A CMM E A INFRAÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS
Nos enganaram de todo jeito, deixaram a bancada evangélica passar por cima de nós. Eles jogaram a nossa associação na rua e passaram todos eles por cima. Não fizeram um trabalho detalhado pra conhecer As Amazonas, levaram assim pro plenário, votaram, e nós ficamos no chão, sem o menor direito de defesa. Eu não estou querendo nem mais receber aqueles papeizinhos que os evangélicos distribuem nos ônibus. Eles não podiam usar a religião pra isso. A igreja católica mandou um documento pra nós dizendo que eles não são contra não. Eu até tenho uma reportagem aí de um padre repudiando esse preconceito dos evangélicos. Eles usaram a religião deles pra nos prejudicar. Dizendo eles que estão em defesa da sociedade. Eu acho que uma mulher prostituta também é da sociedade. Só que ela é excluída. Por isso a gente tem de lutar: pra incluir ela na sociedade. Eu já corri lá com a SEJUS, com a Dra. Michelle, pra perguntar se os Direitos Humanos não vão se manifestar. A gente pode não saber muita coisa, mas sabe que estão fazendo uma coisa muito errada conosco. Ela nos disse que segunda-feira ela iria chamar a imprensa pra dar uma coletiva, que os direito humanos vai se manifestar. Eu disse: “É, doutora, a senhora leu os jornais? Tem palavras lá horríveis que eu nem tenho coragem de falar. Temos que fazer alguma coisa.” Enquanto isso, até agora, As Amazonas não tem apoio de nada não. Tem um fórum aqui, um negócio de OSC-AIDS, e a gente é aliada a esse fórum, só que esse fórum não ajuda em nada. Eles fazem assim, pegam a pessoa, botam numa canoa lá no meio do rio, sem ela nunca ter remado, e dizem: “Te vira, aprende a remar pra ti chegar lá na beira.” Quer dizer, não ensina nada. E esse fórum ficou de nos ajudar, dar uma oficina, alguma coisa pra gente entender melhor como funciona uma associação. Mas eles não fazem nada disso. Aqui, até o saquinho pra botar o quite de preservativos a gente paga. Será que não tem nenhum órgão, nada que nos auxilie para que esse nosso trabalho não acabe, que se desenvolva. Por isso que a utilidade pública era muito importante pra nós.
O RABO-DE-ARRAIA DA CLASSE POLÍTICA
Quando iniciou As Amazonas eu não queria, teve uma coordenadora antes de mim, eu era secretária financeira, mas ela não passou cinco meses. Aí elas queriam me colocar, e eu não queria essa responsabilidade de jeito nenhum. Mas foi feita uma assembléia geral, e não teve jeito, me colocaram. Nós temos a ata aí: nenhum voto contra, nenhuma abstenção, tudo a favor. Aí eu tive que ficar, e eu digo: “Eu tenho que lutar pra não acabar essa associação.”
Aqui em Manaus já teve um sindicato das prostitutas. Agora, como é que tinha um sindicato, se a profissão não é legalizada? Na mídia, pra todos os efeitos, esse sindicato funcionava, e nunca funcionou de verdade. Tem uma mulher chamada Yara Negrão. A Marize Mendes me falou que entregou uma casa com documentação e tudo para o sindicato das prostitutas. Essa casa pertence às prostitutas. E o que essa mulher fez? Ela botou a família dela pra morar lá. Até hoje a família mora lá; e até hoje as mulheres cobram isso, que essa casa é delas. Nós fomos lá com a Marize Mendes e dissemos: “Nós queremos uma sala pra trabalhar.” E ela nos disse: “Como é que vocês querem uma sala se vocês tem uma casa.” Foi aí que nós soubemos da história. Ela fundou uma associação, essa Yara Negrão, pegou verba da Marize Mendes e do Amazonino no nome da mulherada todinha. As meninas são revoltadas por causa disso, porque ela pegou uma ficha, saiu pegando nomes das meninas, xerox dos documentos todinhos. Nós estávamos lá na reunião, quando o Amazonino era governador, e ele assinou o cheque pra elas, e a Marize Mendes montou essa casa desde a máquina de lavar pra essas mulheres. Ela [Yara Negrão] saiu vendendo tudo; eu acho que ela só não vendeu essa casa porque ainda não deu pra vender, e não fez nada pelas mulheres. Até hoje elas são revoltadas por causa disso. Nós fomos atrás de resolver isso. “Se a casa é das prostitutas, entregue pra elas, que elas sabem o que fazer. Elas não vão fazer casa de moradia não. Elas vão fazer alguma coisa que seja útil pra todas elas. Agora, na campanha da Marize Mendes, ela nos prometeu reaver essa casa, tinha mais ou menos umas quinhentas mulheres, com filho e tudo, porque ela levou uns brinquedos, já que era dia das crianças. Fomos falar com a Mariza Mendes, já que a casa foi doada pras prostitutas, porque não entregar pras prostitutas? Eu fui lá ver a casa. É perfeita pra se montar uma creche, pra botar as crianças, os filhos delas. A casa tem quatro banheiros, várias salas, dava pra fazer ali uma boa casa de apoio pra essas mulheres. Ela prometeu que se ela não conseguisse reaver essa casa, ela ia dar uma outra. Aí a Marize Mendes vinha enrolando a gente, que ia resolver. Agora é que ela não vai resolver mesmo, que ela até votou contra nós. Logo ela que veio até nós pedindo voto, a maioria de todas essas mulheres que fazem programa votaram nela. Ela prometendo que ia dar uma casa pra nós trabalhar. Ela prometeu no meio de umas 500 mulheres num comício, e agora ela diz “não” até pro nosso projeto. A gente não ia nem precisar de utilidade pública, se a gente tivesse um local pra trabalhar. Parece que agora está na Justiça, porque tem aquele negócio de uso capião. Essa casa aqui é minha, aqui era onde eu dormia, o meu quarto, eu tive que colocar lá pra trás pra ceder esse pedacinho aqui pra botar as coisas, receber alguém. A gente tem vontade de ter uma casa de apoio pra ajudar essas mulheres, porque tem mulher que dorme na rua, tem mulher que não arranja o dinheiro pra pagar o seu ônibus pra voltar pra casa, tem mulher que passa fome, porque não tem dinheiro pra comprar o seu almoço. Eu sei, eu vejo isso de perto.
A VISIBILIDADE DO TRABALHO SOCIAL DAS AMAZONAS
O que aconteceu? Eles não aprovaram o nosso projeto, quando foi no outro dia eles aprovaram o deles. Eu acho que a gente vive num mundo cheio de injustiças, de desigualdade, hipocrisia, tudo de ruim tem, e aqueles lá de dentro são os piores de todos. Eu me sinto tão feliz quando eu faço uma reunião, dia 26 foi o aniversário das Amazonas. Cada uma deu um bolo, um guaraná, botamos uma velinha, batemos palma, conversamos bastante, e você vê o interesse daquelas meninas. É uma questão social muito séria, e as autoridades viram as costas? Dentro da Rede Brasileira tem várias associações que já são utilidade pública. A Gabriela Leite, que é da Rede Brasileira, ela é desse tamanho, mas é valente, se for possível ela briga até com o Papa, e ela tá na luta pra legalizar essa profissão. Eu falo pras meninas nas reuniões: “Não dou dois anos para a profissão de vocês estar legalizada. E quando estiver legalizada, vocês vão ter os direitos de vocês garantidos. Aqui mesmo nos interiores, em Itacoatiara, Manacapuru, aqui do lado de Manaus, têm associações de prostitutas, e tudo é bem organizado. Só é aqui que eles estão botando essa dificuldade. Eu faço um ofício pra essas secretarias aí, eles negam, na maioria das vezes não mandam nem resposta. “Espera, que nós vamos ligar”, mas essa ligação nunca é feita. Eu não gosto de ficar adulando muito essas pessoas não. Poxa, estão vendo que a gente está fazendo um trabalho social, de utilidade pública mesmo. Não querem ajudar. De um ponto de vista foi até bom ter acontecido isso na Câmara Municipal, porque tem divulgado bastante a nossa associação. Na verdade, prejudicou mais a eles do que a nós.
A LINHA CONTÍNUA/ATUAÇÃO DAS AMAZONAS
Foi o que eu disse ao jornal. Eles tinham que sair lá de dentro do plenário e ir pras ruas. De 9h da noite em diante. Eu tenho o mapeamento, não de todos, porque é demais. Eu conheço meninas que tem marido. O marido fica com os filhos em casa e elas vão pra rua ganhar dinheiro pra levar pra casa. Eu conheço mulheres que não gostam de ser filmadas, de aparecer, porque ninguém sabe que ela é prostituta. Eu conheço mulheres que sustentam quatro, cinco filhos com esse trabalho delas. Tem homem que quer fazer filho, mas não quer assumir. E tem muitas mulheres que levam isso como um trabalho mesmo, sério. Eu faço reunião de quinze em quinze dias com elas, pra orientar elas de como usar o preservativo, como falar com seus clientes, não mexer nas coisas dos outros. São duas coisas que ninguém aceita dentro da nossa associação: mulheres que roubam e que usam drogas. Esse negócio de violência contra as prostitutas tinha muita. Eu andei fazendo umas reuniões aí com as meninas. Vão orientando os homens que saem com vocês: “Agora nós temos uma associação, qualquer coisa a gente dá parte de vocês.” Tem a Lei Maria da Penha. Lá no Centro, naquele box policial, nós fomos falar com o sargento pra corrigir mais os policiais dele, porque eles estavam maltratando as mulheres lá. Agora os policiais já tratam as mulheres de outro jeito, com mais respeito. Eu tenho percebido que não acabou, mas mudou um pouquinho. Porque tinha gente que só de olhar para uma prostituta dava pra perceber o desprezo. Agora, não é mais tanto assim. Devagarinho a gente vai mostrando, com muita luta a gente consegue integrar essas mulheres na sociedade. Agora, os vereadores é que não estão conseguindo entender. Eles falaram de uma cláusula do nosso estatuto que, segundo eles, nós estamos incentivando à prostituição. Eu li o estatuto de novo e não vi nada disso.
Eu sei que mexer com as coisas das prostitutas é polêmico, mas a gente tem que mexer, a gente tem de correr atrás dos nossos direitos. Elas exigem muito da gente, e isso é bom: “E aí, quando é que vai ter reunião.” Essa semana elas me aperrearam muito, querendo saber sobre esse projeto na Câmara Municipal. Eles só sabem reprovar os nossos projetos e não nos ajudam em nada. Eu tenho aí 60 cartas de meninas, 60 depoimentos. Todas elas pedem trabalho. Nós fomos às ruas perguntar o que elas queriam/precisam de mais necessário para a vida delas: só pedem emprego. Graças a Deus, em relação a saúde, está tudo bem. Nós fizemos uma pesquisa agora daquele auto-exame de HIV, levamos 200 mulheres para fazer o exame. Graças a Deus, não deu nenhuma positivo. Pra você ver que o vírus da Aids não está dentro da prostituição. Ele deve está para algum outro lado.
O nosso trabalho é muito importante, e vamos continuar. A Weydman me falou que vai dá entrada na utilidade pública da associação dos gays (AAGLT). A gente vai se unir aos gays, e quando eles derem entrada nos projetos deles, nós entramos também. Nós vamos nos juntar e perturbar mais ainda.
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