.um “suplemento” kinemasófico de perceptos/afectos imagéticos.

Velha crítica para novas imagens. Na literatura há boato antigo que diz ser o crítico um escritor frustrado. Que dizer disso no cinema? Não percamos tempo com as opiniões hollywoodianizadas no Times, Veja, Folha sobre cachês, bilheterias, efeitos especiais, truques, Oscar will go to… Pior mesmo é quando alguns íntegros jornalistas querem se passar por críticos de cinema. Que desastre! Mais divertido pelo menos é acompanhar a universalização dos comentários nos blogs, embora grande parte, ao sair das salashoppipocola, revele mais sobre o personalismo de quem escreve do que sobre o objeto em questão, ao menos sai da doxa emitida como verdade advinda de uma autoridade imbuída de um poder e uma posição superior. Mas, pelo meio, de vez em quando há a possibilidade de encontros de idéias e conceitos. Diante disto, para alguns velhos-antigos críticos, o cinema caiu em decadência com a dominação do cinema televisivo hollywoodiano que invadiu a Sul-América, a África, Ásia e até a Europa enquanto dizimava os Chayenes, os comunistas, os extraterrestres, os terroristas. E a dominação tornou-se controle a partir da formação de subjetividades: Cidade de Deus e Tropa de Elite são eminentemente Hollywood, ademanes não terem ganhado a estatueta da cristalização do olhar embotado. Já os velhos-recentes críticos de tantos poucos anos não compreendem o cinema de Autor, como queria Godard, confundindo-o com personalismo, o que os leva a esperar sempre o previsto, o justo em películas anteriores. Estes, geralmente escondidos atrás das fachadas de jornalões e revistas sequelados, não possuem a capacidade de ver com o “olho do espírito” — a câmera —, por isso vão recobrindo imagens com sabujos de letras sobre técnicas subordinando idéias ou meramente fazendo o pior que se pode fazer diante de uma película: descrever filmes! Estes nunca viram uma imagem, não podem ver a linha contínua de um Claude Chabrol, chegam a acreditar que Herzog rendeu-se a Hollywood, por tanto fantasiar nunca viram a imagem-espaço real de Lars Von Trier nem pressentem a “opulência simples do cinema argentino” (Fernando Masini). Quando se trata de Autores que se encontram no interior de Hollywood, como David Lynch ou Gus Van Sant, os a-críticos e seus séquitos parecem ter visto tudo de cima do muro do estúdio de gravação a que se alojaram, sem perceber que os verdadeiros cineastas apenas deixaram para os críticos seus simulacros e há muito já saltaram o muro e vão pela rua Imagem-Mundo.

.A DIAGRAMAÇÃO DA IMAGEM-GAY “MILK” DE GUS VAN SANT.

Milk 01 por você.

Gus Van Sant é um educador do olhar. Assim como todos, dos astros de Hollywood aos estudantes de Columbine, falam apaixonadamente do que ele lhes proporcionou fazer, assim também com todos que assistem seu cinema. Assim como no Elefante os atores e toda a equipe de filmagem participaram de todas as etapas de sua feitura, assim também é como se ele nos convidasse: “Você não precisa ser esse telespectador passivo. Vamos! Que imagem seu olhar deseja? Uma imagem deseja seu olhar. Tome a câmera.” No Elefante, alguns, bem seguros nos salões de premiação e nas suas dependências salashoppipocolas, acreditaram que Gus era bonzinho, colocando-lhes os vários ângulos da questão — Que técnica! — e o tornaram cult, pretendendo mantê-lo ali com eles em segurança. Mas foram às náuseas e saíram desesperados quando o malvado Gus quis levá-los a passear, quer dizer, fazer roturas de skate no Paranoid Park.

Agora chega para baixar na internet e, posteriormente, às salas, salinhas e salões (menos nas de Manaus, pois por aqui só rola se o rolo for autêntico Hollywood), Milk, que, na hilária renominalização brasileira recebeu o pós-título “A Voz da Igualdade”. Rapidamente os críticos tentaram adesivar em Milk decalques imagéticos, obviedades que cristalizaram em si de Elefante e Últimos Dias, principalmente, e menos do Paranoid, pelo qual saíram cambaleando do cinema, e se agarram desesperadamente na primeira oportunidade para, ressentidos, atacarem Gus Van Sant, esse grande traidor. Com a boca espumando e os olhos turvos, não viram uma só imagem. Aliás, nunca viram uma imagem.

Para começar, preenchem a tela com o sensório-motor, reduzindo-a à imagem-ação da narrativa histórica-linear de Harvey Milk (Sean Penn), primeiro ativista gay a ser eleito a um cargo público nos Estados Unidos. Claro que, mesmo depois da liberação sexual dos anos 60, de um lado, ainda havia lugar (ainda os há?) para falsos moralismos cristãos em nome da família e dos bons costumes, repressão física — pois os gays sempre souberam que não existe repressão psicológica —, ainda havia a representação fálica da significação ser macho, mas, de outro, o mundo já era abertamente gay, pelo menos em São Francisco, o amor já ousava dizer o nome e andava em bandos pelas ruas, de modo que se uma mona era deslancada pela polícia, outras tantas saíam às ruas com seus apitos, como numa disseminação infernal. Mas por que aquela espécie de confinamento no distrito do Castro? Por que este retrocesso? Por que a violência policial contra os gays perdura, embora estejam economicamente incluídos e organizados. É essa a imagem que o apito caído ao chão vê numa discussão entre Milk e os policiais. Não está conseguindo ver direito? Milk viu. Não adianta mais tão somente opor o apito ao cassetete, é preciso minar o que está emperrando o movimento homossexual, que são os códigos de leis nas casas legislativas e tribunais. Foi o que Foucult também viu: que o problema não é tão somente a repressão, mas principalmente o controle a partir do racionalismo que ilumina todas as mentes e movimentos corporais. A imagem de Gus Van Sant não é a partir de uma questão pessoal por ser gay, dá conta de um movimento histórico. Há uma guerra entre heterossexualidade e homoerotismo, e é uma guerra de imagens. “Toda criação tem um teor e um valor políticos. (Deleuze)” Uma imagem nítida, épica, do prédio da prefeitura de São Francisco, o “teatro” de Milk ou, como diria Brecht, onde ele se banha, estrategicamente, na lama. “Vou deixar que ele me batize. Precisamos de votos para os direitos dos gays.” Uma imagem opaca, escura, do namoro com o afetado Jack Lira (Diego Luna), como se o câmera-man cambaleasse, e uma imagem à sombra, trepidante, quando ele se reúne com seus amigos para organizar um movimento contra a fascista Emenda 6 encabeçada pelo senador John Briggs, e que propunha a demissão de professores homossexuais e de quem os apoiasse ao perceber que os políticos “aliados” ao pé da lareira não podem nem nada querem fazer a favor da luta dos homoeróticos. A imagem gay Milk de Gus Van Sant corta em transversal, formando um diagrama incapturável para as estratégias de poder, que vai perpassando numa proximidade democrática gays, mulheres, velhos, operários, todas as minorias. Observe-se, entre outras coisas, o posicionamento fundamental da câmera que vê Milk do meio da multidão e com ele compõe.

Falando ao Cahiers de Cinéma, Deleuze diz que não acredita na morte do cinema pela televisão, e toca na questão do uso de novos aparelhos, novos instrumentos no cinema: “Esses instrumentos giram em falso na mão dos autores medíocres, e para estes substituem as idéias. No caso dos grandes autores, ao contrário, esses aparelhos são solicitados por suas idéias.” Gus Van Sant utiliza vários recursos, como a fotografia, imagens televisivas tanto em gravações a-fílmicas há época ou do documentário Nos Tempos de Harvey Milk, de Rob Epstein, quanto em gravações da atual filmagem — e até desenhos em papel. O relato de Milk, que, além de quebrar a linearidade narrativa e produzir o efeito do narrador-morto que fala Pasolini, introduz uma máquina de guerra que faz persistir o enunciado de resistência: o gravador. Cada um desses aspectos é uma tese de arte cinematográfica. Como exemplo, peguemos uma das que mais chamaram a atenção, que são as entrevistas da garota propaganda de sucos de laranja, Anita Bryant, que, fundamentalista cristã, passa a levar uma cruzada contra os direitos dos homossexuais. Além desse embate discursivo, no entanto, cinematograficamente, o que está em jogo é a imagem de cinema diante da imagem televisiva, no que ela tem de melhor/pior, a perfeição técnica pela qual os “novos poderes de ‘controle’ tornam-se imediatos e diretos” (Deleuze).

Duas imagens são fundamentais para afirmar o suplemento estético de Milk a que nos propomos aqui. Uma colagem já experimentada por outros, como Michael Haneke no Código Desconhecido, e que em Gus Van Sant, tal qual as linhas abstratas de uma tela de Mondrian, preenchem o plano vazio, na composição da multiplicidade que explode nas diagramações micropolíticas fazendo da tela um plano de imanência da imagem-gay, quando Cleve Jones liga para avisar um outro homossexual em outra cidade para se mobilizarem diante da Emenda 6, e este a outro, a outro, a outro… Harvey é apenas o centro de distribuição, ele se sabe Milk como um movimento contínuo de afirmação da potência gay de agir: “Não sou um candidato, sou parte de um movimento. E o movimento é o candidato. Há uma diferença. Vocês não veem, mas eu vejo.”

Milk 02 por você.

A outra, aparentemente rápida e desconexa, é a imagem da ponte Golden Gates. Quem viu a ponte de Portland no início do Paranoid Park? Quem leu o agrimensor K. atravessando a ponte no início dO Castelo, de Kafka. A ponte é a passagem, a alteridade, a mudança, o novo que aparece na vitória de Milk para supervisor (similar ao cargo de vereador no Brasil), “quando todos estavam juntos”. A ponte de onde os amigos de Milk atiraram suas cinzas, “em meio de uma chuva de refresco de uva”, informam os créditos.

No que diz respeito à grande crítica e comentários vulgarizados de olhares controlados, a maioria de suas obviedades/redundâncias são para o Oscar de Sean Penn, e sua interpretação, reduzida para a maioria a seus beijos entre Harvey e Scott (James Franco), e depois Harvey e Jack. Um ou outro observa que, como o próprio Sean Penn afirmou, não fez uma imitação do supervisor Harvey Milk nem tampouco se utilizou de trejeitos homossexuais vulgarizados. Para quem acompanha Sean Penn, sabe-se que há muito Hollywood não lhe é uma prisão, ele só faz e assim também na direção, Na Natureza Selvagem — projetos nos quais está eticamente envolvido. Faltou dizer que, não afeito a mediocridades e clichês, o que Sean Penn encontrou foi uma postura gay, uma singularidade, é aí que reside e resiste seu papel. A mesma postura que fez ele ganhar o Oscar pela segunda vez, mesmo que os jurados não tenham visto nada. E também porque era preciso dar uma estátua para não se sentirem tão distantes do que não compreendem. Por isso as constantes e falsas questões, reveladoras de toda a homofobia hollywoodiana: “Por que você não trabalhou com atores homossexuais?”

Outro aspecto/tese de Milk é a música, melhor dizendo, os sons de Milk. Às vezes eles são quase inaudíveis, como o som da sirene que se houve durante a conversa na madrugada antes de uma das eleições. Assim como as questões políticas mesclam-se ao desabafo amoroso de Cleve e os elogios de Harvey — “Você é adorável!” —, a sirene demonstra, assim como eles não dormem, que o poder não descura de sua vigilância, mas ainda, como um distanciamento brechtiano, como que dizendo ao espectador: “Não se engane, isso não é uma ceninha sentimental.” Assim como também não o é a cena que o rapaz de Minessota fala do iminente suicídio e quando explica que não pode fugir da família, a câmera pega a cadeira de rodas. Dupla violentação. Além e aquém da imagem-ação extensiva, a relação óptico-sonora de Milk com a ópera é fundamental. A ópera, como uma espécie de hipérbole do teatro burguês e da música “erudita” não sendo nem uma coisa nem outra, numa tentativa de reviver as tragédias gregas, preenche de sons o desejo de liberar o homoerotismo que na Grécia Antiga era alethéico —, agora, pela visibilidade gay, que requebra a sexualidade constituída da modernidade. No dia anterior à fúria de Dan White, Milk havia assistido no Metropolitan a Tosca, de Puccini que tinha na personagem homônima ao título a brasileira Bidu Sayão.

No filme, a cena final da ópera: Tosca chora sobre o corpo sem vida de Mario, morto fuzilado. E, desesperada, se mata. Naquela madrugada, falando ao telefone com um amigo, Harvey diz a ele: ‘Ontem vi Bidu Sayão!’, como quem havia realizado um velho sonho. (Blog da Helô)”

Gus Van Sant desvia o cinema da ditadura imposta ao olho pela imagem-ação. O assassinato não é pra ser visto nem mesmo do lado do direito penal, mas a partir da sensibilidade que ele interrompe. Close demorado no ouvido de Milk, ruídos, um curto-circuito interrompido. Indiferente aos tiros, seu olhar repousa em quê? É preciso levar a câmera, o “olho do espírito” até Bidu Sayão num cartaz, antes que um último tiro turve-nos os olhos de Milk ao chegar o vazio da sensibilidade anulada. Fundido em negro. Enquanto na nitidez da luz artificial que faz desaparecer a realidade, como diria Paul Virilio, na imobilidade dos simulacros de poder, de Castro uma multidão, no episódio que ficou conhecido como Marcha das Velas, não permitirá que a escuridão seja totalitária. É nessa imagem-menor que o garoto da cadeira de rodas foge e aumenta sua potência de agir no encontro com uma mulher violentada, um operário explorado, um negro discriminado, ama criança oprimida, e seguem para um lugar incapturável para a heterossexualidade tão séria e falsa quanto a Era Vitoriana. Se é verdade que o mundo vulgarizou a imagem nas estratégias da técnica pela técnica, Gus Van Sant inverte e, para além do pessoal e do si, diagrama a Imagem-Mundo-Gay.

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