Leonardo Boff 01 por você.

No primeiro dia das atividades no III Fórum Mundial de Teologia e Libertação, a água, o planeta, o cuidado com a nossa casa, ou como se refere a ela o teo-filósofo Leonardo Boff, Gaia, foi o tema dominante.

A aula magna da abertura dos trabalhos do fórum, dada por Boff, foi um lúcido depoimento filosófico, e que mostrou o quanto é urgente que se modifique o modo de produção capitalista, tirando de foco a produção desenfreada por uma relação.

Antes de sua fala, porém, a organização do evento trouxe aos participantes um belíssima e tocante encenação, a nos mostrar toda a potência e importância do líquido precioso, ressignificando o seu aspecto simbólico assumido em todas as religiões, e colocando-a na materialidade do existir, como bem acima das relações comerciais, sendo impossível a existência humana na Terra sem a sua democratização.

A encenação foi acompanhada pela tocante canção, de autoria da bela Iva Rothe, que você confere abaixo:

Água lava

Água leva

Água livra

Água louva

Água cai como luva em mim.

.

Água lava

Água leva

Água livra

Água louva

Água cai, bebo chuva

.

Desci nas cheias da água

A água do mar é

Amor

É cheia

Vai pra areia

Sereia

Norato

Tinta

Teia

.

Sei lá

Sei não

Do que a água é capaz

O que a água faz

Amor

É cheia

.

E volta à aldeia

Pro mato

No ato

Vinda

Ceia

.

Água lava

Água leva

Água livra

Água louva

Água cai como luva em mim

.

Água lava

Água leva

Água livra

Água louva

Água cai, bebo chuva”.

Leonardo Boff 04 por você.

LEONARDO BOFF E AS ECOLOGIAS REVOLUCIONÁRIAS

Em seguida, Boff iniciou a sua aula magna, a qual este Bloguinho trará ao leitor intempestivo na íntegra, sendo esta a primeira parte, e a segunda, publicada neste domingo.

Bom dia a todos e a todas, quero cumprimentar todos aqui na mesa e agradecer a todos aqueles ao nível internacional e ao nível local que ajudaram a preparar este encontro, que é sempre cheio de surpresas quando não, dificuldades , mas que pertence ao processo da libertação. Especialmente quero agradecer às pessoas da infra-estrutura que quase sempre são invisiveis, mas que são elas que fazem funcionar encontros da magnitude deste. O tema que me foi proposto é de gravidade extraordinária e ao mesmo tempo de grande atualidade. Nós estamos neste momento, a humanidade inteira envolvida em crises suecessivas que começaram com as crises econômico-financeiras, mas que revelaram crises mais profundas. Eu vejo que há cinco grandes crises que nós vamos enfrentar: duas de natureza conjuntural, mas com tendência a ser estrutural, que é a crise econômico-financeira e, especialmente, as crises estruturais e sistêmicas, que é a crise mundial do aquecimento, a crise energetica e a crise de excassez de água potável. Diante de um quadro desses, nós lutamos contra, que é a percepçao comum da humanidade, que assim como estamos não podemos continuar. Nós temos que mudar. A questão é a qualidade desta mudança, para que não seja apenas mais do mesmo, isto é, mais produçao, mais consumo, mais exclusão, mais agressão ao sistema da vida. Esse sistema não pode mais ser prolongado, porque ele pode nos levar à escuridão. Nesse último tempo, pode levar a humanidade ao caminho já percorrido pelos dinossauros, a ameaça de guerra sobre a espécie humana.

Leonardo Boff 03 por você.

Nós temos que enfrentar novos caminhos, novas alternativas, e essas alternativas não são simplesmente objeto da simples liberdade e do bom gosto dos homens, é uma necessidade que a história nos impõe. Ou nós mudamos ou vamos ao encontro de situações dramáticas e, por vezes, de grandes tragédias coletivas. Nesse contexto, quero lembrar a primeira frase da Carta da Terra, que é um documento que nasceu do trabalho que veio de base da humanidade. Durante oito anos, mais de cem mil pessoas do mundo inteiro se colocaram a pergunta: “O que nós queremos para o nosso planeta terra? O que nós fazemos merecer para a humanidade?” Depois de oito anos de trabalho, saiu um pequeno documento que foi logo acolhido pela ONU, pela UNESCO, e cujo propósito dos que nela trabalharam sobre a animaçao, especialmente, de Mikhail Gorbachev, que mais do que nunca se preocupa hoje com as questões da sobrevivência do planeta. O nosso propósito é levá-lo à ONU, para que seja agregado ao documento que é a carta das nacões unidas sobre os direitos humanos. Então teríamos um documento sobre a dignidade da terra e outro sobre a dignidade humana. Esse documento começa com a seguinte frase: “Estamos diante de um momento crítico na história da Terra, numa época em que a humanidade deve escolher o seu futuro e a escolha é essa: ou formar uma aliança global para cuidar uns dos outros e juntos cuidarmos da terra; ou então arriscar a nossa destruição e a devastação da diversidade da vida. Para podermos dizer essa palavra que parece uma palavra de alarme e de pânico, consultamos grandes centros de investigação como a Real Academia de Ciências de Londres, como o MIT e também o Instituto Max Planck de Munique de Pesquisas Científicas. As três instituiçoes disseram, segundo os dados que nós temos, esta é a situação do nosso planeta Terra. Então o desafio é criarmos, dadas as ameaças que imperam sobre o mundo, criarmos uma aliança global de cuidado uns dos outros, porque se não cuidarmos da vida humana ela não tem condições de se reproduzir e vai de encontro com o medo e o desaparecimento. Se não cuidarmos da casa comum, que é o planeta Terra, nós não teremos onde ficar, porque esta é a única casa que nós temos, o Planeta Terra. Então, face a essa realidade, se impõe uma reflexãzo séria que nos aponta para práticas concretas que pensam no ciclo da ecologia. A ecologia aqui tem que ser bem entendida não como um procedimento técnico de administraçao de recursos escassos, mas a ecologia como uma arte, a ecologia como um novo paradigma, isto é, a ecologia como uma forma nova de relacionamento do ser humano com a Terra, com a natureza, com os processos produtivos, com as maneiras de distribuição. Uma forma nova de estabelecer a distribuição do poder, criar novos valores, de dar significação às nossas últimas árvores sobre esse planeta. A ecologia engloba todas essas questões; só se trata da ecologia como paradigmas, sobre isso que gostaria de dizer um pouco para aprofundarmos a questão das ameaças que pesam sobre Gaia, a casa comum e as ações, as atitudes e os valores que nós devemos desenvolver para encontrarmos uma resposta à altura do desafio e que garanta futuro para nossa espécie humana e que garanta as condições para que a Terra possa continuar viva, com a sua integridade, com a sua vitalidade. A terra é muito mais fora do que nós. Nós há milênios estamos entrando numa guerra contra Gaia, e nós não temos nenhuma chance de ganhar essa guerra, pela voz que existe em nós, de Oxalá, nós mereçamos viver ainda nesse planeta.

Leonardo Boff 05 por você.

Há menos de um mês atrás, Mikhail Gorbachev, numa reunião da Carta da Terra, em Amsterdã, repetiu a frase: “Nós precisamos de um novo paradigma de civilização, necessitamos de uma coalizão de valores, que garanta o futuro da vida humana e que o futuro do princípio vida, porque se nós não fizermos isso, nos próximos trinta, quarenta anos, a Terra poderá continuar, mas continuar sem nós, a espécie humana.

Então a primeira coisa que nós precisamos compreender quando falamos de ecologia é o amplo aspecto que essa categoria “ecologia” é pensada e vivida hoje por todos aqueles que estão se preocupando com o futuro da vida e da Terra. Primeiro nós temos aquilo que é comum, que é assimilado pela grande mídia mundial: a ecologia como meio ambiente, entre os ambientalistas. Entretanto, temos que enriquecer essa compreensão de meio ambiente e que na verdade todos estamos cansados de meio ambiente, nós queremos é o ambiente inteiro.

É importante entender que o meio ambiente não é uma coisa exterior a nós. Não é que a Natureza está lá e nós estamos aqui, nós formamos uma grande comunidade, porque nós tomamos ar, respiramos, comemos, nós fazemos parte de sistema. Para compreender melhor essa questão da ecologia com o meio ambiente, eu acho que duas categorias devem ser compreendidas, que é o meio ambiente como comunidade de vida e a Terra como Gaia, como super-organismo vivo. Quando em 1953, dois grandes cientistas norte-americanos, Watson e Crick — Watson faleceu há uns meses atrás —, quando esses dois cientistas descodificaram o código genético, se deram conta de uma coisa surpreendente, que alguns consideram talvez uma das descobertas mais importantes para os seres humanos. Descobriram que todos os seres vivos, desde a matéria mais originária, que surgiu há oito bilhões de anos atrás, passando pelos dinossauros, pelas plantas, pelos pássaros, chegando a nós, que todos os seres vivos temos os mesmo tijolinhos de base que constroem a vida, isto é, temos os mesmos 20 aminoácidos e as 4 bases constatadas que todos conhecem das aulas de biologia: a adenina, a guanina a tinina e a citocina, isto é, aqueles elementos químicos que permitem a combinacao dos aminoácidos e assim a biodiversidade. Todos os seres têm essa mesma fórmula de base; por isso que todos os seres vivos são primos, são irmãos entre nós. Entre uma minhoca e nós, há 46% dos elementos comuns, entre o chimpanzé e os seres humanos há apenas a diferença de um gene e muitos biólogos suspeitam que ele tem esse gene, mas não tem nenhum interesse em ser ativado para não se transformar em ser humano. Ele está feliz nas florestas, subindo e descendo as árvores, comendo a sua comida, profundamente integrado na natureza.

Leonardo Boff 06 por você.

Então, o que na verdade existe não é meio ambiente, o que existe é comunidade de vida, e a vida não existe sem o seu substrato físico-químico, porque as células dos seres vivos estão em profundo diálogo com os elementos físico-químicos, os seus nutrientes e a sua vida. Então, todo o processo do universo está ligado à corrente da vida e nós somos o libelo dessa corrente da vida. Por isso que defender a natureza é defender a vida, defender nossos irmãos. O nosso desafio é pelo primeiro princípio da carta da terra é cuidar e proteger com compreensão, com compaixão e com amor a toda a comunidade.

Nós, seres humanos, ocupamos um lugar singular, que é o lugar da responsabilidade, que nós somos seres éticos. Nós podemos ser o anjo bom que protege e cuida da natureza, assim como podemos ser o satã do planeta terra, que transforma o jardim do Éden, que transforma num matadouro, num processo de grande devastação e exploração. Nós vivemos nessa grande comunidade de vida que hoje está ameaçada e é de nossa responsabilidade protegê-la, cuidá-la.

Segunda categoria importante, é ter uma compreensão melhor da terra. Normalmente na visão capitalista se entende a Terra como baú das coisas mortas da qual nós podemos tirar serviços, recursos para a utilização humana. Esse é um conceito pobre e redutor da Terra. A Terra é muito mais que isso. A Terra é um super-organismo vivo, como diz o grande biólogo, talvez o maior vivo hoje, que criou a palavra biodiversidade, Edward Wilson, se eu apanhasse uma colher com um pouco de terra eu me identifico com super microscópios de 30 a 50 bilhões de microorganismos presentes nesse punhado de terra. Imagine em todos os solos da terra. Por isso que do mesmo chão nascem os frutos e as flores da diversidade das plantas. Tudo aquilo que nós admiramos, que tem como substrato a Terra, que é a própria Terra. Mas a prova científica disso nos trouxe um grande cientista, James Lovelock, que tinha como tarefa com sua equipe junto à NASA de construir aparelhos que, colocados nas naves espaciais dos foguetes, pudesse identificar vida no universo. E esse aparelhos não identificaram nenhum sinal de vida, mas quando se voltavam para a terra, todos os ponteiros enlouqueciam porque apontavam aí tem vida. Então Lovelock e sua equipe comparou as condiçoes da terra com nosso dois vizinhos Vênus e Marte, porque hoje temos condições científicas de saber quanto de carbono, quanto de oxigênio, quanto de ferro, de enxofre cada estrela, cada planeta tem. Ele se deu conta que a terra se comporta como um super-organismo vivo que equilibra os elementos fisicos e biológicos de tal maneira que ela continuamente pode manter e reproduzir a vida. Ele analisou os principais elementos que compõem a vida na terra e se deu conta que sempre há milhões e milhões de anos, a terra sempre tem 21% de oxigenio, se descesse a 18 nós desmaiariamos, se subisse a 27 ou 28 nós não teríamos condiçoes de acender um fósforo sequer, porque queimaríamos o oxigênio logo. Pra sempre manter esse equilibrio produz esses 21% de oxigênio. A salinização dos oceanos, tão importante para os climas, para os regimes das estações, para a própria vida, há bilhões de anos sempre tem 3,4% de sal; se subisse a 6, seria como no mar morto, não haveria vida. Então, a terra mantém esse sutil equilibrio. Da mesma forma, mantém os outros elementos fisico-quimicos, como o magnésio, o ferro e o enxofre, para que a vida tenha a qualidade que ela tem hoje e ela possa sempre permanecer. Então, a terra é viva e nós somos a própria Terra que no momento da sua evolução, da sua complexidade, a terra começou a sentir, a pensar, a amar, a cuidar e esse momento é a emergência do ser humano. Por isso que homem e mulher precisam da terra fértil, e que Adão, na narrativa biblica, vem de Adamar, que significa “terra fecunda”, “terra fertil”, e Adão é o homem e a mulher vivos, filhos da terra…

(Continua amanhã.)

2 thoughts on “CELEBRAÇÃO DA ÁGUA — LEONARDO BOFF E A ECOLOGIA DO CUIDADO

  1. Fiquei encantada um dia desses ao assistir o DVD de Leonardo Boff – acho que o nome era “As 4 Estações da Ecologia”. Gostaria muito de comprá-lo, mas não estou conseguindo localizar onde, na Internet.

    Apreciaria, se pudessem, uma orientação nesse sentido.

    Muito grata,
    Cordialmente,
    Elsie Gress

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