CURTA CONSIDERAÇÃO SOBRE O RIDÍCULO

Eu sou um homem ridículo. Agora eles me chamam de louco. Isso seria uma promoção, se eu não continuasse sendo para eles tão ridículo quanto antes. Mas agora já nem me zango, agora todos eles são queridos para mim, e até quando riem de mim – aí é que são ainda mais queridos. Eu também riria junto – não de mim mesmo, mas por amá-los, se ao olhar para eles não ficasse tão triste. Triste porque eles não conhecem a verdade, e eu conheço a verdade. Ah, como é duro conhecer sozinho a verdade! Mas isso eles não vão entender. Não, não vão entender”. (Dostoiévski, O Sonho de Um Homem Ridículo).

Se existe algum segmento social que entendeu a força revolucionária do ridículo foram os gays. As plumas e paetês, o espetáculo, o exagero, tudo isso se territorializa num descodificação do Real enquanto força semiótica de interdição das produções sociais.

A ridicularização é a máquina de guerra gay contra a seriedade moral-cristã-burguesa que coloca o segmento como “marginal”. Ou você, leitor@ intempestiv@, acha que foi por acaso que os gays foram ser carnavalescos, estilistas, coreógrafos, cabeleireiros, num tempo em que as forças reacionárias impediam o acesso social deles à profissões ditas “sérias”? O ridículo-revolucionário do mundo gay é ver aquilo que a seriedade hétero desconhece.

Não por acaso, a sapatada bushista não teria a força revolucionária que teve sem o ridículo de ter sido um sapato a arma. Fosse um tiro, jamais teria atingido a consciência social de forma a expor a nudez do império estadunidense.

O ridículo, este recurso usado nas artes, principalmente no teatro, tem a potência desestabilizadora daquilo que se estabelece no plano da semiótica dominante como tendo um valor fixo. Por exemplo, a cruz. Ao inverter o símbolo maior do cristianismo paulino, os chamados darks ou satanistas, sem o perceber, ridicularizam o elemento simbólico e revolvem a domesticalidade do objeto.

Serialidade, ou seriedade, vem de série. “Você não me leva a sério!”, “Como queres ser levado a sério, te comportando desse jeito?”. A seriedade é um universal que captura por vários aspectos. Se sou sério (uma série), não haverá nada em mim que não seja esperado pelo outro. Não há, portanto, surpresas, animosidades. Desaparece o intempestivo. Ao mesmo tempo, a seriedade tem o objetivo de ocultar ou fazer desaparecer a diversidade, e não falamos aqui de diversidade apenas sexual: qualquer tipo de diversidade. Por isso, a seriedade é um modo de existir caro à moral burguesa e às ditaduras: com ela, não há perigo.

Onde se encontra a seriedade nas relações de gênero? Ora, em tudo aquilo que a sociedade estabelece como valor em relação a um e outro. No vestuário, nos gestos, nos dizeres, no uso do corpo, na expressão, nas crenças e valores. A psicanálise, por exemplo, construiu todo o seu complexo de Édipo em cima destes valores, tentando supô-los universais. O homem se realiza enquanto homem ao debruçar-se sobre o mundo. Suas conquistas, seus desafios, tudo está fora. Isso inclui conquistas sexuais e amorosas. A mulher lhe dá o estatuto de homem não menos do que o conhecimento ou uma obra realizada. Já a mulher só encontra o seu ser-mulher no homem. É se debruçando sobre ele que ela encontra a sua “identidade”. Daí o jogo de sedução, para a Psicanálise, se reduzir a uma procura do si no outro, pela armadilha da inversão.

Mas e quando um homem, biologicamente falando – se é que podemos falar em homem biologicamente, e não cremos que seja possível – se utiliza destes adereços, destes gestos, deste uso do corpo, desta semiologia feminina para si? Aí se encontra o ridículo: para a moral, a seriedade, evento intempestivo que só foi capturável, durante muito tempo, pela patologia psiquiátrica. Ali, como força desviante marginal, ele encontrava – à força! – o seu estatuto social. Mas foi justamente o ridículo que transformou e pode transformar a potência comunitária gay em elemento da diversidade, e não da tolerância.

Carnavalescos, estilistas, calebeireiros, figurinistas, atores, cantores, putos, as profissões que tem por objeto de trabalho o corpo ou suas expressões. Claro, não há hoje em dia profissão em que não se encontre um homoerótico bem sucedido, mas disso falamos depois. O que interessa aqui é apontar um caminho: como o ridículo poderia ter passado como elemento condutor – um phylum – para o enfraquecimento da subjetividade moralizante-serializadora?

Primeiro, apontamos uma hipótese: no aspecto ridicularizador dos signos e objetos desta mesma moral. O riso tem uma potência revolucionária. Quando subvertemos um objeto? Quando retiramos dele uma função, uma utilidade que outros nele não viram. Exemplo: o sapato de Muntanar Al-Zaidi. Ao usá-lo contra as forças tirânicas do ocidente travestidas em Bush, ele subverteu duas funcionalidades: uma, a do sapato, que deixou sua função de proteção e conforto aos pés, para se transformar em arma. Outra, subverteu o sentido do sapato no plano social oriental e ocidental, mas principalmente oriental. Naquelas bandas, o sapato é considerado objeto inferior, por pisar o chão e carregar sujeira. Atirá-lo em outrem é considerada ofensa gravíssima. Mas jamais alguém pensou em transportar esse sentido “sujo” do sapato para as relações, digamos, diplomáticas. No dia seguinte, o ato individual, familiar, no máximo entre vizinhos animosos, transformou-se em ato político. O Gestus brechtiano. Num ato, todo o desejo de uma nação. A ridícula sapatada girou o mundo, causando risos, e não a morte, e salvou a vida do atirador sapatístico, Al-Zaidi, que se tivesse usado uma pistola, teria sido alvejado e morto. Pergunta-se: como ficará a segurança estadunidense nas próximas coletivas de imprensa? Ordenará que todos tirem os sapatos?

Outra hipótese: o uso dos objetos de forma ridícula, excessiva, burlesca, uma ópera bufa dos costumes. Um homem que se pinta, como uma mulher, mas de maneira tão excessiva, tão marcadamente mais exagerada, que acaba transbordando o próprio exagero e evidenciando o aspecto de ridículo que existe na própria seriedade. Ao quebrar a série, ele questiona a ela própria. A Parada Gay, em seus primórdios, incomodava a “boa gente” exatamente por isso. Ao pintar a boca num deslumbre em batom rouge, não apenas se desafia o chamado “bom gosto”, mas também desmascara o engôdo que se quer passar como sedução da boca feminina. Desterritorialização / descodificação do recurso amoroso. Descodificação do sexo. Nada mais revelador do que o tesão de um homem hetero, casado e com filhos, de pau babando por uma travesti. O encanto se mantém enquanto as roupas, a maquiagem, os trejeitos, o tom de voz efeminado persistem. E até mesmo é possível, para alguns, suportar e manter o tesão quando o travesti tira a calcinha, e no lugar da xana, um pau. Mas o sentimento de culpa que sobrevém quando “passa a lombra” é devastador. O encanto desapareceu. Resta o ignóbil de ter embarcado na fantasia e ver os signos que lhe garantem o status de macho socialmente esfacelados. Muitos travestis são espancados e assassinados nesta momento.

De qualquer sorte, a laminação que a semiótica da sociedade de consumo tem realizado, a chamada globalização dos costumes, tem arrefecido estas diferenças. Ao menos é o que pensam os desavisados. Se hoje os homoeróticos são mais aceitos, estão, como sucesso, em quase todos os postos de trabalho, não é porque tenha diminuído a discriminação, mas porque a própria sociedade tem sido efetiva no trabalho totalitário de padronização dos costumes, das crenças, e da própria cognição. Não por acaso, nas chamadas “bordas” da sociedade, a homofobia continua fortíssima, a xenofobia, o nazismo, o fascismo continuam, empurrados para baixo do tapete, como se isso fosse o suficiente para bani-lo.

Daí a necessidade de um outro ridículo, o de não aceitar e subverter esse véu de tolerância que se quer passar como progresso. Ele nada mais é do que uma outra forma de capturar a diversidade e eliminar o ridículo da existência humana.

Todas as cartas de amor são

Ridículas.

.

Não seriam cartas de amor se não fossem

Ridículas.

.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,

Como as outras,

Ridículas.

.

As cartas de amor, se há amor,

Têm de ser

Ridículas.

.

Mas, afinal,

Só as criaturas que nunca escreveram

Cartas de amor

É que são

Ridículas.

.

Quem me dera no tempo em que escrevia

Sem dar por isso

Cartas de amor

Ridículas.

.

A verdade é que hoje

As minhas memórias

Dessas cartas de amor

É que são

Ridículas.

.

(Todas as palavras esdrúxulas,

Como os sentimentos esdrúxulos,

São naturalmente

Ridículas.)

Álvaro de Campos, heterônimo Fernando Pessoa.

Ui! E agora vamos ver outros sopros gays (ou não) que passaram no nosso Mundico!

Φ PSICÓLOGO É DEMITIDO POR NÃO ATENDER CASAL GAY. O psicólogo Gary McFarlane, terapeuta sexual, foi demitido pela empresa Relate, em 2008, por se recusar a atender um casal gay. O motivo? O sexo gay é considerado proibido pela sua religião. McFarlane entrou com uma ação no tribunal britânico, mas os juízes consideraram que a demissão se deu por motivos profissionais, e não religiosos. A decisão foi tomada com base na lei da igualdade. Tomou, neném? Por isso essa colunéeeesima defende: se você vai ser psicólogo, seja por inteiro. Não existe isso de ser psicólogo só dentro do consultório. A própria Freudoca já dizia que um terapeuta só pode ir até onde seus próprios bloqueios lhe permitem. Como ser um terapeuta e resolver neuroses que são sintomas da sociedade de consumo, se o próprio terapeuta não resolveu os seus? Ponto para o Estado Britânico, laicidade é isso aí, baby! Sentiu a brisa, Neném?

Φ PRIMEIRO TRAVESTI DOUTOR DO BRASIL É DO CEARÁ. Luma Andrade (páaaara com isso de colocar o nome masculino, horrorosa! Vamos usar o nome social e respeitar a escolha da moça) é a primeira travesti do Brasil a ingressar em um programa de doutorado. Ela conseguiu entrar no Doutorado em Educação da Universidade Federal do Ceará. Luma, 31 aninhos de muito talento, é servidora concursada da Secretaria de Educação, e responsável pela coordenação de uma área onde existem 28 escolas de 13 municípios do interior. No sertão do Ceará, tá pra ti, maninha! A mona é da pá virada! Faz um trabalho lindíssimo por lá, e trabalha contra a discriminação. Luma interveio em um caso de uma diretora que queria proibir um aluno homoerótico de frequentar as aulas porque ele passava batom. “Falei que isso não era certo, que era imoral. É preciso que entendam que a própria Constituição garante o direito de todos à educação, sem discriminação”. Chutou o pau da barraca homofóbia, meu bem! Te lembrou algo? Claro, lá, como cá, existem as Paolas Brachos, cidadãos e cidadãs com direitos iguais. Ao que conhecemos da universidade brasileira, pelo menos do que vemos pela Federal do Amazonas, com sua letargia, Luma não será apenas mais uma doutora. Ela apenas irá validar o título. Porque na escola da vida, na escola da democracia, ela já é doutora. Sentiu a brisa, Neném?

Φ VEREADOR EM MANAUS BRIGA PARA NÃO USAR GABINETE 24. O vereador Reizo Castelo Branco (PTB), filho do casal explorador da miséria social, Sabino Castelo Branco e Vera Lúcia Castelo Branco, recém empossado, no sorteio dos gabinetes ficou com o número 24. Fez careta, beicinho, chorou, bateu o pé, reclamou que os amigos da balada iam zoar com ele, que as gatinhas não iriam mais querer jogar playstation com ele (as reclamações são fictícias, mas o tipo psicológico xuxeado é real), e pediu ao presidente da Câmara Municipal de Manaus que trocasse de gabinete. Em novo sorteio, ficou com o número 13. Insistiu, desta vez, para que o zagallístico número fosse retirado da porta. Uma amostra do nível cognitivo e intelectual de nossos nobres edis. É possível que Reizoca, orgulho do papai, consiga escapar destas armadilhas da moralidade e do sexismo? Não cremos: Reizo não saiu do mais baixo grau do conhecimento. O Grau Zero da Razão. Reizo, como indivíduo, acredita que o céu é azul, que o açúcar é doce, que o número 13 traz má sorte e que o 24 determina a sexualidade. Ideias advindas da superstição, quando a inteligência é levada ao sabor do acaso dos encontros. O filósofo Spinoza afirma que numa cidade que se quer potência democrática, jamais uma pessoa que não saiu do primeiro grau do conhecimento, o mais baixo, pode ocupar cargo público. O que evidencia que a democracia representativa brasileira é falha, e que inteligência não é pré-requisito para ocupar um cargo público. Quanto a Reizo, é apenas mais um exemplar da patologia social do familialismo patriarcal burguês. Como ele, zil Arthur`s netos, bisnetos e trinetos, Harry`s e outros mais. O ato de Reizo é passível de processo, tanto no plano civil quanto no institucional. Ao renegar o gabinete número 24, a lógica seria investigar o motivo. Se realmente se confirmar a discriminação (qual poderia ser, senão este?), o fato seria justificativa para se abrir um processo na comissão de ética da CMM, supondo que exista. De qualquer forma, o fato deveria ser recebido pela comunidade gay de Manaus como uma violentação. Até o momento, no entanto, a resposta tem sido o silêncio. Menos, é claro, desta coluna, que sabe que este tipo de atitude não interessa à democracia. Sentiu a brisa, Neném?

Beijucas, até a próxima, e lembrem-se, menin@s:

FAÇA O MUNDO GAY!

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