A INTIFADA DE KANOUTÉ, O MESSIANISMO DE KAKÁ E OS DEUSES DA FIFA

A letra declina do seu curso e produz uma turbulência que ativa a palavra. Assim, ela poderá produzir no plano da linguagem outros sentidos, outras declinações, intensidades, clinâmen.
É somente assim que a palavra interessa à democracia. Nada de vazio, nada de significante que carrega universais, armadilha epistemológica do não-saber e não-dizer.
No futebol, esporte que carregou e ainda carrega a potência lúdica do Jogo como condição do homem no mundo, parece ainda mais difícil fazer com que a palavra cumpra sua função atômica/democrática. Dos locutores aos jogadores, passando por torcedores e a imprensa esportiva epistemologicamente reduzida, o que predomina é o som, o significante, capturado numa rede de nós que não deseja o movimento intensivo. Tudo para transformar o jogo em mercadoria. Há quem acredite.
Duas comunicações futebolísticas: “I Belong to Jesus”, e “Palestina”.
A primeira, uma frase, em inglês, língua pretensamente universal, se quer penetrante semanticamente na maioria das consciências, mesmo aquelas que não compreendem a língua da ilha da Rainha Elizabeth, compreendem o que se quer dizer, ainda que entendam apenas o nome: Jesus.
A outra, escrita em cinco línguas diferentes, signos gráficos diferentes, os signos latinos, estes que desfilam agora pelo olhar intempestivo do leitor, outros, orientais, islâmicos, disformes, por vezes. A mesma palavra, não tão conhecida quanto a anterior, mas que, como corpo, carrega a mesma intensidade revolucionária: “PALESTINA”.
Jesus, aliás, era Palestino.
As duas, em camisas de jogadores. A primeira, na camisa do justo e reto Kaká, fundo branco, palavras em negro, demonstrando sua fé e seus sacrifício pessoal em nome dos ideais de Jesus, ainda que numa “releitura pós-moderna” do casal Renascer, Estevam e Sônia Hernandez. Em nome de sua fé, Kaká doa milhões de Reais à igreja, o que, no mundo dos homens, pode ser sinal de lavagem de dinheiro. Daí uma investigação pelo Ministério Público de São Paulo para verificar se o que Kaká ora compra com seus milhões é realmente a sua vaga no Paraíso.
A outra, do jogador do Sevilla, time espanhol, envergada pelo meia franco-malinês Frédéric Kanouté, fundo negro, palavras em branco, Palestina, somente a palavra, plena de significado, todos lêem e sabem imediatamente do que se trata.
O massacre israelense-estadunidense contra o povo Palestino, concentrado na Faixa de Gaza.
Ainda, os dois protestos são proibidos pela FIFA, e no caso de Kanouté, que joga a Liga Espanhola, também proibida em seu país.
As semelhanças terminam aqui.
O “Jesus” de Kaká esvazia o significado “jesus”, tornando a palavra um mero significante, pois que não encontra no “profeta da bola” nem uma escassa ação que lembre o cracasso palestino, filho de Maria e José. E mais: a leitura Paulina de Jesus, apregoando-o eternamente na cruz, e criando, a partir da distorção de sua atuação revolucionária, uma igreja que cultua a dor, o ressentimento, o messianismo, é uma das responsáveis pelo massacre que ora ocorre em Gaza. É em nome do mesmo deus de Moisés, intolerante, ciumento, vingativo, que os israelenses assassinam os palestinos, em verdadeiro genocídio.
Já a “Palestina” de Kanouté é plena de sentido, de força intempestiva, cria turbulência no árido léxico futebolístico. Não fosse Kanouté, jamais em qualquer tempo se falaria a palavra Palestina num programa de televisão de jornalismo esportivo, nem em jornais. Mais: Kanouté tem uma biografia que dá à palavra a força política que ela tem. Se os foguetes do Hamas e do Hezbollah continuam a explodir em território israelense, é porque, nas palavras de Saramago, “Israel ainda terá muito que aprender se não é capaz de compreender as razões que podem levar um ser humano a transformar-se numa bomba”.
Enquanto o atoleimado Kaká dissemina um Cristo morto e eternamente na cruz, louvando a dependência e a submissão a uma igreja menos cristã que paulina, e que foi e continua sendo instrumento de domesticação e conformação à exploração pelo capital, o islamismo de Kanouté não fica no metafísico, mas vai ao infinito para transformar a finitude. Não quer o reino dos céus depois da morte, armadilha da dor, mas, como Cristo, quer o Reino de Deus aqui na Terra.
Kanouté é muçulmano, e quando se transferiu para o Sevilla, se recusou a jogar com a camisa do time, que estampava a marca do patrocinador, um site de jogos de azar. Durante muito tempo, incluindo a Supercopa da Europa 2006 (abertura da temporada por lá), jogou com uma bandagem sobre o logotipo do patrocinador. Embora tivesse lugar garantido na seleção francesa, preferiu ir jogar no selecionado de seu país natal, Mali. Lá, afirma ele, jogar não tem preço, dada a paixão dos torcedores pela sua seleção. Igualmente, questiona quando a federação espanhola pressiona para que os jogadores africanos retornem o mais breve possível depois de servir às seleções. “Lutavam para que voltássemos… e eu pensava nos imigrantes de Mali a quem expulsam da Espanha”. Quando jogava na Inglaterra, no Tottenham – clube de origens judaicas – Kanouté criou a Development Trust, entidade que trabalha com desenvolvimento regional de comunidades e movimentos sociais, e mantém hospitais, escolas e uma escolinha de futebol na capital de seu país, Bamako, num projeto intitulado “A Cidade das Crianças”.
Interessante notar que Kanouté foi repreendido e multado, pela federação de um país que luta para se livrar dos despojos de uma sanguinária ditadura militar. A FIFA proíbe qualquer manifestação política, qualquer escrito em camisa, e até mesmo que o jogador tire ou deforme o uniforme do seu clube na cmomemoração de um gol. Daí, mistura equivocadamente Kaká com Kanouté.
É que a FIFA não quer concorrência contra o seu Deus: o sacrossanto Patrocinador.