O Ministro Gilmar Mendes, em afável reunião de amigos realizada nas dependências da TV Cultura de São Paulo semana passada, afirmou acreditar que os blogueiros da mídia alternativa (ou os Sem-Mídia, como se intitulam), não existem. Ao amigo Paulo Markun, aquele que denunciou o colega Waldimir Herzog só ao avistar o alicate, e que estava temeroso de uma invasão bloguística no programa “Roda Viva”, ele acalmou:

Essas pessoas não existem, são pessoas de ficção (sic) na maioria delas. Eu disse, esses protestantes, esses protestadores, Markun, não conseguem encher uma kombi. E era verdade, não apareceu ninguém, apesar dessa conversa fiada, quer dizer, nós temos aí acho que gente metida em guerra comercial, incomodada com decisões do Tribunal, e estão querendo criar esse tipo de movimento. Alguns deles impressionam. Mas nós todos que somos profissionais, que estamos na vida pública, sabemos que eles não têm qualquer qualificação”.

CONSIDERAÇÕES SOBRE O EXERCÍCIO DA JUSTIÇA

A idéia de justiça remonta aos primórdios da socialidade. Ela surge a partir da transição do Direito Natural ao Direito Civil: momento em que a garantia da integridade física do indivíduo torna-se necessária para manter o tecido social, bem mais complexo que o criado pelo gregarismo.

A partir do trabalho e da produção social, cria-se uma cidade, uma con-vivência, e cabe ao Direito Civil, ou a sua forma constituída – os poderes: legislativo, executivo, judiciário, no caso do Estado Burguês – “adequar” o sentido de justiça, sem perder de vista o equilíbrio entre o individual e o coletivo.

No entanto, para o direito ético, num entendimento Spinozista, não há distinção entre o individual e o coletivo: quanto mais evoluída no plano da potência democrática é a cidade, menos conflitos entre o individual e o coletivo. Para isso, para Spinoza, é necessário existirem pessoas com capacidade superior para exercer as funções. A um jurista, por exemplo, cabe a faculdade intelectual da abstração: compreensão dos fatos para além da sua efetividade momentânea, fazendo da justiça não uma valoração, mas uma produção de um outro olhar. Assim o fez, por exemplo, o sábio Salomão, que mostrou às duas mulheres, com simplicidade, que o valor da vida é superior ao valor da posse.

GILMAR PELA PSICANÁLISE

Gilmar Mendes afirma crer que as pessoas que lhes são discordantes e que escrevem em blogues não existam. Recurso psíquico descrito na semiologia psicanalítica como denegação: mecanismo de defesa classificado como um dos mais arcaicos, no sentido evolutivo do termo. Em resumo, o indivíduo que denega o faz por ser incapaz de lidar com ameaças ao seu modo de existir em outros planos, como por exemplo, o da razão, o da argumentação. Ao suprimir a existência do conteúdo ameaçador, o aparelho psíquico encontra uma débil compensação: crê não na eliminação da ameaça, mas na sua inexistência. O mecanismo é considerado arcaico porque remete aos primórdios da infância, quando as representações do outro e de si ainda não estão definidas.

Evidente, Gilmar não denega a existência dos blogueiros – apenas afirma que eles não cabem em uma kombi – mas denega, e aí está o mais perigoso, o discurso que desestabiliza as certezas que ele carrega. Não as enfrenta pelo uso da razão, pela via do diálogo, mas tão somente tenta – em vão – lhes negar o estatuto da existência. Característica que, ultrapassado o quesito individual e transbordando no coletivo, deu em ditaduras. Pessoas que padecem desta enfermidade são perigosas à democracia.

Gilmar Mendes acredita nos grampos no STF. Os grampos eram falsos. Gilmar Mendes acredita no “estado policial”. Mas só o invoca seletivamente, quando a polícia captura um dos que não se comprimem na base da pirâmide social. Gilmar crê na inocência de Daniel ‘Mendes’ Dantas a priori, mas também crê na culpabilidade de Protógenes e De Sanctis, ad infinitum. Gilmar não sabe, mas na feira móvel da prefeitura de Manaus, onde se compra diariamente o peixe, as verduras e a farinha do almoço dos beneficiários do Bolsa-Família, muitos não sabem o que é um blog, mas todos sabem quem é o ministro que soltou duas vezes o banqueiro corrupto que a polícia federal prendeu. Sintomático? Para piorar: Gilmar acredita na revista Veja.

GILMAR PELA ESQUIZOANÁLISE

Quantos blogueiros cabem em uma kombi? A metáfora mendiana tem razão de ser. A kombi é um veículo de massas, de transporte de massas, feito para carregar essa gente que pode ser algemada pela polícia sem que os policiais sejam ameaçados pelos STF.

Mendes emite enunciados, reverbera a subjetividade laminadora do capital. Afirma acreditar que a opinião blogueira seja “guerra comercial”, como se o dinheiro fosse o signo-móbil da existência humana. Quem nasceu primeiro, o homem ou o dinheiro? Para o sujeito-sujeitado da relação do capital, reduzido ele próprio ao fetiche da mercadoria, não há distinção. A Gilmar, preso nesta trama, deve custar acreditar que exista algo por detrás da conta bancária. Democracia, por exemplo. Inteligência, opinião pública, coisas que o dinheiro não faz e não compra, senão como simulacro.

Gilmar crê no número. Outra característica epistemologicamente arcaica. O movimento não é extensivo; é intensivo. Um blogueiro intempestivo é muitos, porque ele é produção desejante de enunciações outras, que não as que capturam pela dor e pelo ressentimento. Jamais caberiam em uma kombi, porque o território é outro. Gilmar não compreende, mas sente. E sofre. Por isso necessita do afago da TV Cultura em lhe cercar de ‘amigos’ na entrevista televisiva. Na própria Diamantino, onde a família Mendes conta com ‘facilidades’, a onda bloguística chegou: o prefeito eleito, quando candidato, ameaçado de morte por encarar os desmandos mendianos, foi eleito, com folga.

A rede democrática intensiva não se reduz ao blogue. Ela se faz na inteligência coletiva, da qual até ele, Gilmar, faz parte.

2 thoughts on “A ONDA BLOGUEIRA E A KOMBI DO GILMAR

  1. Parabéns pela análise. Pena que o Senado não faça uma sabatina nos ministros para verificar o seu passado.

  2. Companheiro Anônimo,
    no seu passado está a linha essencial fenomenológica de seu presente, por isso não é necessário para eles, e também por isso eles não alcançam a compreensão que você exercita.
    Valeu!

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