A jornalista Dora Kramer, incensada como intelectual pela mídia-maioria, acusou, em artigo publicado em vários sites, jornais e blogues brasileiros da direita raivosa, o juiz Fausto Martin De Sanctis de rasgar a Carta Magna do país, e mais: comparou-o aos militares que instituíram a ditadura no Brasil, em 1964. Em seu texto, desfila comparações à ditadura militar, que em nome da voz rouca das ruas, rasgou a Constituição em nome de uma parca noção de justiça. Como se o jovem De Sanctis, para compreender a “comezinha lição” que Dora (não a de Freud, mas a do Estadão, embora esta igualmente freudiana) lhe dá em seu pito jornalístico, necessitasse passar pelos corredores e pelas celas do DOI-CODI. Mas, convenhamos, para trabalhar n’O Estado de São Paulo (como de resto, poderia ser a Globo), ela deve entender de ditadura. Vejamos a fala do juiz, que provocou na inteligente jornalista o arrepio saudosista dos anos de chumbo, travestido em formação reativa no texto. Disse De Sanctis (citado por ela):

A Constituição não é mais importante que o povo, os sentimentos e as aspirações do Brasil. É um modelo, nada mais que isso, contém um resumo das nossas idéias. Não é possível inverter e transformar o povo em modelo e a Constituição em representado. A Constituição tem o seu valor naquele documento, que não passa de um documento; nós somos os valores e não pode ser interpretado de outra forma: nós somos a Constituição”.

O grifo é nosso, na vã esperança de que Dora, a freudiana, consiga escapar das armadilhas semióticas dos signos-clichês. Ao ver o juiz citar a constituição como apenas um documento, uma expressão de um povo, Kramer acreditou achar o calcanhar de Aquiles, digamos, o de De Sanctis: em nome da democracia, se faz uma tirania, essa é a máxima que exemplifica o nazismo, o fascismo e o bushismo, por exemplo. E, afirma Dora, o “De Sanctismo”! “Não se deve comparar os propósitos, dirão os que ainda não compreenderam que não há cotejos acusatórios, mas um convite à reflexão”, afirma Dora. Então está combinado, não nos afogaremos na poça da medriocridade moral. Façamos uma análise não mais profunda, porém mais distanciada, de longe, do alto, onde o ar rarefeito, afirma Nietzsche, segrega os mais fracos.

A MIOPIA FILOSÓFICA DE FAUSTO.

Fausto não fez mais que dar uma aula de primeiro semestre do curso de Direito. Sentença que sequer aparece como questão no exame da OAB: soberania popular.

Art 1o, Parágrafo Único: “Todo poder emana do Povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.

Mas De Sanctis é míope: para ver, precisa se aproximar do acontecimento. Uma miopia filosófica: nas entranhas de um país, onde quer se fazer reinar a ordem do capital, onde as leis são produzidas em sua maioria para manter as pessoas em seus devidos lugares (hierarquização social), falar que nós somos a Constituição pode soar como uma imensa ironia, não detectável ao paladar intelectivo dos jornalistas de plantão. Democracia, De Sanctis sabe, não é igualar-se à mediocridade intelectual, mas permitir que a inteligência coletiva transborde nas singularidades. Para azedume geral entre os jornalistas da mídia-maioria.

POVO: CAUSA, CONSTITUIÇÃO: EFEITO DEMOCRÁTICO

Quando De Sanctis afirma que não se pode inverter a causalidade povo-constituição, não o afirma em nome de uma crença patriótica, ele exibe um axioma. Não é possível a inversão não porque ele não a deseja, mas por que efetivamente é impossível: Gilmar “Dantas” Mendes tenta interpretar as leis em nome de seus interesses. A mídia constantemente procura obnubilar a consciência popular contra Lula. Ambos fracassam, porque um efeito jamais pode ser anterior à sua causa. Nem Gilmar poderá sobrepôr sua vontade a do povo, nem a mídia, que sentiu de perto isso em 2002 e 2006. Ao contrário de Fausto, quem atropela a constituição em sua corporeidade e efetividade (as leis e a própria organização do Estado) é muito menos um juiz que condenou o banqueiro midiático que o seu exército de assassinos de reputação, pretensos algozes da inteligência e da pluralidade, em nome da preservação de interesses corporativos. Rasga muito mais a Constituição quem aluga os seus neurônios a interesses expúrios, quem explora a miséria alheia, quem lucra com a estupidez produzida em série pelo sistema educacional e pela televisão quase-onipresente. De Sanctis restitui à Carta Magna o seu lugar primo, de direito: o de expressão de um povo, ainda que redigida pelos seus representantes. Não a desafia, não a suspende, não a questiona, mesmo quando esta é escudo para o parasitismo institucional, seja de ministros, seja de jornalistas. Diferente da mídia, que se escuda no fácil lugar-comum da ameaça à liberdade de expressão quando seus interesses corporativos são ameaçados.

CONSTITUÍDA IMPRENSA, CONSTITUTIVA DEMOCRACIA

Aceitamos a condição imposta por Dora em seu artigo, e não discutimos a questão da fala De Sanctiana do ponto de vista de comparar os propósitos, já que eles são em verdade incomparáveis. Agora, este bloguinho democrático propõe ao jornalismo braziniquim, que saia da sua condição de sujeito-sujeitado, corpo corporativo-político constituído, bem definido pelos códigos do capital, que se sobrepõem aos códigos de outras ordens, como os intelectivos, epistemológicos, de ética. Que engendrem um jornalismo constitutivo, como a Carta Magna, na visão de um jurista filósofo, como De Sanctis, se apresenta. Constitutivo, nas produções subjetivas desejantes de um povo livre, não capturado pela dor e ressentimento dos signos do capital, e que produza comunalidade, potência-democrática intempestiva. Aí sim, poderemos falar de um jornalismo constitucional.

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