SEXO NÃO TEM IDADE. PROTEÇÃO TAMBÉM NÃO” – A “QUALIDADE DE VIDA” E A MORAL DE CLASSE SÃO OS VETORES DA AIDS.

O JARDIM DO AMOR

Fui até o jardim do amor

E vi o que jamais vira antes:

Uma Capela erguida no centro

Onde eu costumava na relva brincar.

E estavam fechados os portões da Capela,

E havia mandamentos inscritos sobre a porta;

Por isso voltei-me para o jardim do amor.

Que tantas flores lindas tinha.

E vi que estava cheio de covas

E lápides onde as flores deveriam estar:

E Padres de negro faziam estas rondas

Atando com espinhos minhas alegrias e paixões.

In “Songs of Experience”, de Willian Blake.

Amanhã é o Dia Mundial de Luta Contra a AIDS, e o mote da campanha deste ano no Brasil é: “Clube dos Enta”. Cinquenta, sessenta, setenta, oitenta, noventa. É o novo nicho onde a AIDS tem se propagado.

Esta população, compreendida para a classificação cronológica como a terceira idade, tem se contaminado com impressionante rapidez nos últimos anos. Do ano 2000 para cá, o número de infectados dobrou, passando de 7,5 casos por 100 mil habitantes para 15,7/100 mil. Segundo o ministério da saúde, em 1996, na região Norte, haviam 3 casos por 100 mil, e em 2006 este número já era de 13/100.000. Aliás, é nesta região, juntamente com o Nordeste, que a epidemia tem avançado, enquanto no Sul estabilizou-se (ainda que com números preocupantes) e tem recrudescido no Sudeste e Centro-Oeste. Há, no entanto, que se comemorar o aumento da sobrevida dos pacientes acompanhados: de 58 meses/média em 1995, passou para 108 meses/média em 2008.

A explicação para o crescimento na população idosa, segundo alguns especialistas, é a melhoria da qualidade de vida desta população, patrocinado pelo avanço da medicina em relação ao funcionamento de certos processos biológicos, como a reposição/correção hormonal e os tratamentos mara disfunção erétil. Carlos Alberto Moraes e Sá, do hospital Gafree Guinle, no Rio de Janeiro, afirma até que o aumento da contaminação é um sinal positivo, que mostra a efetiva melhoria da qualidade de vida desta população (no link, a transcrição da entrevista dada por ele ao canal Globonews, interessante. Para ver em vídeo, clique aqui).

Um outro aspecto apontado para este aumento impressionante das contaminações nesta faixa etária são as experiências extraconjugais, e aí se insere o tema do homoerotismo. Muitos homens heterossexuais se contaminam em experiências sexuais homo, e contaminam suas parceiras, que nem desconfiam das “escapadelas” de seus íntegros maridos. O mesmo ocorre invertendo-se os papéis, mas culturalmente, a força falocrática coloca o homem como o agente da hipocrisia moral.

O governo, do ponto de vista técnico-científico, faz a sua parte, e a sociedade deve engajar-se nesta luta, que é de todos. Mas, sem o exame dos enunciados que constituem a subjetividAIDS (o conjunto de elementos corporais e incorporais, signos sociais que sustentam a propagação da epidemia), não se poderá combatê-la de modo eficiente.

QUALIDADE DE VIDA?

A sociedade alcunhada moderna (ou seria pós-moderna?) elegeu o mote qualidade de vida como o principal produto do século XXI. Através da ciência e das tecnologias, procura-se ampliar o tempo que é dado ao sujeito existir como corpo bio-social. Seus principais avatares são a medicina (em suas várias vertentes, dadas ao funcionamento do corpo, a boa alimentação, etc) e as tecnologias de facilitação da vida, do contato social, da locomoção, da informação.

No entanto, a sociedade que entende e cultua a vida como prolongação dos sinais vitais biofísicos não se pergunta: “O que é a Vida?”. “E a vida, e a vida o que é, diga lá meu irmão / Ela é a batida de um coração, ela é uma doce ilusão”, cantou o alegre-revolucionário Gonzaguinha. A sociedade que cultua um modo de existir sem compreender seus bloqueios, rachaduras e transbordamentos, não cultua a Vida, mas é tanática.

Tomemos o que se chama qualidade de vida na terceira idade. A medicina evolui como ciência/nicho mercadológico complementar à indústria alimentícia. Os diversos tratamentos de reposição hormonal visam sanar um problema metabólico criado pelas substâncias contidas nos alimentos processados, conservantes, corantes, realçadores de sabor, hormônios artificiais usados nos animais, manipulação genética e outros sintéticos. Um sintoma da relação de estranheza com a comida cotidiana foi visto numa escola particular de Manaus, cujos alunos se espantam quando descobrem que o animal que estão a dissecar na aula de ciências nada mais é do que o frango que comem no almoço. E o frango dissecado nem era o animal in natura, mas sua versão “supermercado”, congelado e embalado.

Ainda: a chamada terceira idade torna-se, com suas zil doenças, a maioria proveniente do modo de existência da moral de classe, o grande nicho da indústria médico-farmacológica, que tende a reduzir tudo ao espectro biofísico.

Medicina que vai anos-luz longe de uma medicina grega, uma medicina anti-socrática, uma medicina nietzscheana. Medicina que entende a vida como realização e produção existencial-ético-éstética. O que é uma ruga? Para a sociedade de consumo, um sinal indelével do fracasso em paralisar a passagem do tempo. O mote “terceira idade” se traveste: “melhor idade”. Sentença judicativa vinda de fora, falseação do existir. Não há melhor idade, se não se é causa da própria biografia.

O idoso a quem se destinam as políticas públicas – e que excluem o idoso homoerótico! – é uma falseação, tem que viver a existência como simulação decadente do tempo paralisado. Jovens outra vez, sem jamais o ter sido? Impossível. O idoso, improdutivo, preso no enredo dos “anos dourados” de uma nostalgia perversa, tentando resgatar o que lhe foi tomado nos anos de pujança biofísica, este não tem nada a ver com a vida. Vive, sem o saber, no ressentimento de tentar reviver o que não viveu. A sociedade de consumo aprisiona a Vida como devir. Gerações inteiras nascem já com os cabelos brancos, epígonos, ou como afirma o filosofante Nietzsche, os carregadores de valores, os camelos da sociedade, os escravos do “Tu Deves!”.

A sociedade de consumo, o trabalho dissociado da sua função ontológica, as relações humanas calcadas no ressentimento, é difícil escapar à armadilha da decadência, e ela inclui um papel para o velho: não ser velho.

Ser velho, efetivamente, é perigoso para o capital. É encontrar outras intensidades, outros devires, uma outra serenidade. O filósofo Deleuze afirma que tornar-se velho é encontrar/produzir um outro gosto pela existência. Gostar a vida, experimentá-la, não no sentido da experimentação do consumo, mas deixar-se atravessar por outras intensidades e produzir outros modos de sentir e existir. A lucidez e a maturidade não são uma maldição, mas uma beatitude. Nada disso passa pela armadilha terceira idade-melhor idade do capitalismo.

Como ter qualidade de vida numa sociedade que prolonga a performance biofísica/sexual do corpo, mas esta sexualidade é resultante de uma moral castradora? Se os corpos são estranhos a seus donos? O não uso do preservativo, neste sentido, é um dos sintomas de uma sexualidade alheada de si. Como chamar de qualidade de vida uma existência preservada pelos fármacos do mercado laboratorial, resultante da deterioração das funções biofísicas do corpo em virtude dos insumos artificiais produzidos pela indústria alimentícia? Trata-se de uma ciência que não vai às causas, mas confunde-a com seus efeitos. Não há, aí, nenhum rastro de Vida.

A SEXUALIDADE BINÁRIA E A DOMESTICAÇÃO DO HOMOEROTISMO

A sexualidade binária é menos uma função biológica que resultante de uma cultura falocrática. O binômio macho/fêmea não é equivalente ao binômio homem/mulher. Na Grécia, o comportamento homoerótico não tinha este viés sexista que carrega na sociedade capitalista, e mesmo lá, aquilo que era considerado “masculino” e “feminino” tinha a ver menos com a anatomia biofísica que com o comportamento, as atitudes e crenças. Mas foi na sociedade capitalista que esta binariedade passou a excluir qualquer tipo de alternativa, classificando-a como desvio. Percebe-se claramente isto na psiquiatria do século XX, que chamava o homoerótico de invertido.

Mesmo em alguns setores do movimento LGBT, procura-se transformar o homoerotismo numa espécie de terceira via, domesticação da sexualidade. É o que ocorre com os conteúdos pretensamente pró-causa que surgem na mídia, como o propalado beijo gay, ou a presença de gays nas novelas: trata-se mais de uma capturação de ordem consumista do que um aumento da potência política. Todo o elemento intempestivo, do uso e do auto-conhecimento do corpo correm risco à medida em que a ciência/mercado domestica a sexualidade desviante transformando-a em uma inócua (consegue?) prática ordeira.

Daí esta binariedade, esta pseudo-intimidade implodir quando se trata de falar e combater o vírus HIV. O comportamento sexual-padrão (homem-mulher-fidelidade) é, certamente, o menos praticado no mundo, e aquilo que se faz por debaixo das cobertas da moral (ainda que dissimulada) torna-se mais perigoso. A AIDS é uma doença menos eficientemente combatida de um viés médico/clínico (embora este seja essencial), do que por uma desmistificação da moral sexual. A prevenção ao vírus da AIDS passa por um auto-conhecimento do corpo e da própria sexualidade, bem como a sua publicidade, não no sentido do exibicionismo, mas no sentido de ser esta uma relação de honestidade consigo mesmo e com as pessoas do entorno.

Quando isto começar a ocorrer, teremos enfim a possibilidade de acabar com a epidemia.

Beijucas, até a próxima, e lembrem-se, menin@s:

FAÇA O MUNDO GAY!

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