A PRAXIS FILOSÓFICA ALÉM DA DISCIPLINA
Segundo o filósofo Michel Foucault, uma disciplina é constituída “por um domínio de objetos, um conjunto de métodos, um corpus de proposições consideradas verdadeiras, um jogo de regras e de definições, de técnicas e de instrumentos”. Como disciplina carrega elementos de um discurso ou de vários, que atuam diretamente ou indiretamente sobre os sujeitos que se tornam seus porta-vozes, muitas vezes anonimamente.
Na escola, uma disciplina é um corpus atuante da imagem do pensamento do estado colocada em prática por um agente-professor graduado e reconhecido por este estado como autoridade capaz de difundir e preservar esse pensamento através de sua semiótica discursiva jurídica-pedagógica-escolar. A prática dos conteúdos programáticos. Daí que muitos professores sejam meros passadores destes conteúdos discursivos.
Com a obrigatoriedade do ensino da disciplina filosofia nas escolas do grau médio, duas proposições se mostram para serem examinadas na compreensão do que sejam escola e filosofia.
I – PROPOSIÇÃO
Para alguns a escola é a instituição do estado — aparelho ideológico —, onde o educando busca informação-formação por via das disciplinas que lhe possibilitarão ler e interpretar os códigos sócio-culturais de sua realidade, para que, munido destes conhecimentos-instrumentos, possa produzir elementos necessários à sua existência em sociedade. Nesta proposição, a escola é um território com estados de coisas bem definidos por suas funções e suas metas, e o professor atua como agente ensignador (aquele que não examinou a ordem dos signos e métodos que o graduaram) do discurso do estado, o organismo a ser preservado. Como ensignador, o professor não suspeita que é apenas a ressonância do corpus-significante dominante e jamais um educador, o que produz novas formas de percepções, afectos e cognições juntamente com o educando. A fundação ontológica do educar. Para este ensignador, o ensino de filosofia será tratado como qualquer disciplina escolar que sustenta um discurso distante da criatividade e atuação comunitária. Nada do filosofar. Apenas ilustrações de História da Filosofia com suas doutrinas e sistemas. Na verdade uma teologia com suas definições de essência, substância, Uno, primeiras causas, coisa em si, fim último, transcendência… Nada de tomar com Marx que “os filósofos não brotam da terra como cogumelos. Eles são frutos da sua época, do seu povo”. Muito pelo contrário. Para si, os filósofos são entes vegetativos.
II – PROPOSIÇÃO
Já para outros a escola é um território que, embora com estados de coisas definidos, é o espaço-virtual de bons encontros capazes de aumentar a potência de agir do educando. Uma espécie de topos-grego democrático, sociedade dos amigos, onde se movimentam uma imanência especulativa, a amizade dos plurais e o diálogo criador. Aí o professor-educador tece, amigavelmente com os educandos, a cartografia dos desejos, os processuais fundadores de novas formas de existências. Micros-percepções poiéticas. Entra na órbita produtora de novos conceitos; outros perceptos: novas formas de ver e ouvir; e outros afectos: novas formas de sentir, como afirmam os filósofos Deleuze/Guattari. Isto tudo na condição de que educação e filosofia são inseparáveis na experiência do pensar como potência do ver e falar. “A condição de que o olho não permaneça nas coisas e se eleve até as ‘visibilidades’, e de que a linguagem não fique nas palavras ou frases e se eleve até os enunciados”, de acordo com o enunciado filosófico, Foucault/Deleuze. Este, o jogo filosofante. Tomar-se como princípio, e não insuportável conseqüência. Na linguagem esportiva, habitante do buraco negro, mero cumpridor de tabela existencial da pálida refração do que lhe foi dado a ouvir e ver. O suporte da ilusão de possuir vontade e desejos próprios.
EDUCASÓFICA
Escapar da doxa-rígida dos enunciados dos sistemas e doutrinas filosóficas que se fazem memória-arquivo-representativo, servindo apenas para citações de salão do tipo erudição inútil. Para professores carreiristas, argamassa fundamental ao alpinismo profissional. Para algumas escolas e alguns pais, arrebatamentos purpurínicos: “Nossa escola é séria, também oferece ensino de filosofia”. “Que bárbaro, meu filhinho está estudando filosofia!”. Bizarrice da inteligência burguesa. A filosofia não é séria, é uma festa. O bárbaro da filosofia são seus devires, seus sopros, suas trepidações, e não suspiros glaciais.
Desta maneira, a disciplina filosofia na escola atuará como produtora de novos saberes e novos dizeres, deslocando-se como devir e não como memória-representativa, recognição dos conceitos e das funções escolares como modelos de clichês ensignantes. O que só ressona, não cria, não declina o ângulo do conhecimento para outras experiências. Mas interdita a Vontade de Saber, a potência que ultrapassa os discursos já postos, anêmicos e anemizantes. O que é supérfluo à educação/filosófica.
No mais, Platão pode, mas na condição de não se imobilizar em subidas e descidas maníacas/depressivas que constituem o Idealismo, com todas suas faces, como a patologia da Filosofia (Deleuze).