PERDOA-NOS, MEIGA ISABELLA, ELAS SÃO ASSIM MESMO
O escritor Primo Levi, analisando o grau de bestialidade do holocausto, nos implicou em sua existência. Disse que todos os homens são seus responsáveis. Nós todos temos que carregar a vergonha por seu acontecimento: a degradação do homem. Primo Levi confirma Marx, para quem a vergonha não é uma atitude individual, alguém que se sente ofendida em seus princípios de valores, mas uma condição social. “A vergonha já é uma revolução… A vergonha é uma espécie de cólera contra si próprio…” O que nos coloca diante de nós mesmo pelo absurdo que encontramos e que precisa ser mudado. A cólera de ter permitido, de qualquer maneira, que este absurdo acontecesse. Não ficar inerte. Esta, a vergonha revolucionária.
A exacerbação da lógica capitalista, como forma de lucro pelo lucro, que a mídia televisiva tem feito com a imagem da meiga Isabella inscreve-se no sentimento de Primo Levi e no pensamento de Marx. A exposição da imagem da criança como recurso para seduzir o telespectador, e assim conseguir audiência, é de total negação da racionalidade humana, caindo na gueto cruel da bestialidade. Há uma compulsiva disputa, sem nenhum brio moral, para quem possui mais imagens para serem super expostas. Uma atitude capitalista tão voraz que a imagem da criança quase já não reflete o seu substrato auto-referente. A representação imagética resultante da percepção do outro sobre seu ser real de criança. O signo corpóreo/incorpóreo como conteúdo mental dos outros e de si mesma. O que lhe fez um ser alguém humano. Agora a super exposição transformou a representação constituída na relação/fenomenal da experiência com seu ser, matéria/sensível, em imagem virtual sem auto-referente real. A imagem da menina Isabella, desativada do pensamento real, tornou- se em um simulacro virtual. A imagem-objeto, suporte mercadológico das TVs. A imagem Isabella, sua identidade ontológica perceptiva, foi violentada e ninguém interferiu em seu favor. Sua propriedade/corpo não foi protegida. Nem os órgão responsáveis pelos direitos da criança se manifestaram. Sua imagem foi usada e abusada para os fins sórdidos do capitalismo.
Agora, a singularidade de Isabella, de ser uma criança diferente de outras crianças, como todas crianças são diferentes entre si, o movimento deviriano que carregava, como todas crianças, como novo construtor de sua existência, não tem importância. Todas as suas notas de criança foram extirpadas sem nenhuma complacência. Só com a complacência do lucro.
A estratégia bestial foi muito bem dirigida. Primeiro expuseram as imagens, envolta a uma locução enfática, a que imobiliza o telespectador, em que a meiga criança encontra-se alegre, sorridente, para levar este telespectador à reação catártica: “Meu Deus, como alguém pode matar uma criança tão alegre e cheia de vida!” Posicionada a imagem alegre, expuseram a imagem dos pais. Os supostos assassinos. Assim, confluídas as duas imagens, começou o esvaziamento do real para o virtual tomar seu lugar e preencher o campo imagético do telespectador, que, virtualizado, perde sua capacidade crítica para o acontecimento atual, colocando-se, a priori, na condição alienada, passiva, para outros eventos semelhantes em seu futuro televisivo.
Moldurado o espetáculo tanático psicodélico, a meiga Isabella, agora, só é encontrada pelos que fizeram a redução das notas perversas do inebriamento sensorial e intelectivo impostos pelo mercado televisivo. Estes, os amigos de Primo Levi e Marx. Os que se envergonham de si próprios, porque sabem que também são responsáveis por terem permitido que este holocausto-televisivo acontecesse. Os que sabem que as condições perversas destes meios de comunicação visa somente à bestialização social, e que é por esta moeda que eles lutam. Não é a infância e a meiguice de Isabella que lhes interessa, mas, sim, o simulacro de sua morte. O que não lhe diferencia de nenhuma outra morte, já que a morte há muito deixou de ser uma das variedades da vida para ser seu simulacro virtual.
De nossa parte, meiga Isabella, perdoa-nos!