A COLONIZAÇÃO HOLOGRÁFICA DA AMAZÔNIA

Os narcóticos [do grego, ναρκωσις, narkosis] são vistos como substâncias que embotam a percepção, alterando os sentidos e reduzindo a sensibilidade, tornando os usuários dependentes e acarretando seqüelas físicas e emocionais. Mas é preciso estender o olhar a diferentes níveis de realidade. Primeiro que há uma diferença no uso de plantas naturais (como a coca e a maconha) nos Andes e no uso destas mesmas plantas, ou quimicamente alteradas, nas grandes cidades. Não é a mesma planta, há variações subjetivas subjacentes. Em toda a zona rural da América do Sul, começa-se a “coquear” na infância para burlar a fome, o frio, a altitude, a fadiga no trabalho. As desigualdades sociais, a miséria, a fome também levam crianças a cheirar cola em vielas de Manaus. Mas há distinções fundamentais. Ainda hoje, o hábito de mascar a folha da maconha e do ipadu é comum nos interiores do Amazonas, mas aí não se encontram viciados (no sentido policialesco), salvo quando já introjetadas as subjetivações desurbanizadas. Esse é na verdade o momento em que plantas naturais como a coca e a maconha saem da linha contínua que passa pelo ritual sagrado, pela medicina popular, pela expansão perceptiva, pela terapêutica natural, passando a ser utilizadas como narcótico. Efeitos de toda a ordem do Capitalismo Mundial Integrado (CMI), do qual fala Guattari. Os índios só se tornam alcoólatras depois que se tornaram índios e deixaram de mascar a coca, tomar o caxiri, a caiçuma, o aluá. Além da gripe e da malária, a civilização trouxe-lhes a etiqueta de como beber com ódio ou medo. Hoje o velho índio bebe o caxiri nas ruas de São Gabriel da Cachoeira numa relação com a civilização degradante, bebe porque precisa ir até o limite para suportar a dor do massacre que continua.

Mas há outras formas de narcose disseminadas. A distância do poder constituído, que aboliu violentamente o estado natural de guerra (Spinoza), mas reluta em preservar um estado civil, instaura a dependência não somente a drogas, mas primeiramente ao poder. Narcose, necrose pelo saber-poder. O poder sempre é um saber, e vice-versa (Foucault). Se no vilarejo de Iauaretê, os índios de todas as idades permanecem embriagados, entediados, sem perspectivas, que trabalho foi esse realizado pelo INPA, ISA, USP, UFRJ, o premiado IPCC, Pierre Clastre, Viveiros de Castro, um batalhão de bolsistas-carregadores-de-bolsa, mestres-amestrados, doutores-feitores, cada qual levando a sua parte em cifras e canudos? O que fizeram realmente para a população de Iauaretê? Não digamos “nada”, pois que um vazio, uma simulação, no sentido de Baudrillard, passa na verdade por uma fabricação de uma uma hiper-realidade. Aventureiros de toda a parte do Brasil e do mundo continuam a aportar na Amazônia. A colonização continua. Não são nem a sombra da sombra dos antigos colonizadores, mas são tão ou mais perversos do que os que traziam a cruz e a espada. E agora já se acrescenta a primeira turma de mestrado em Antropologia Social no buraco-negro Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Se se perseguir essa linha dura, a única diferença será que não precisaremos que venham fazer o simulacro: nós o manteremos e o aperfeiçoaremos. É só dá uma olhada na lista de professores: praticamente na totalidade do sul/sudeste. Mas não cultuemos preconceitos regionais, a questão é que em todos esses anos o trabalho dos mesmos se reduziu à inútil produção de um amontoado de teses (sem produção do novo), livros, álbuns, catálogos, conferências. Museus do etnocídio. E quando Lula foi a São Gabriel, os índios fizeram questão de ter uma conversa a sós com ele, para falar de problemas de saúde, de educação, de trabalho, saneamento básico, etc, o que não conseguiram discutir em todos estes anos num plano lógico-racional com os especialistas-turistas. Por isso, quando o professor Alfredo Wagner faz na aula inaugural uma antropologia do conceito de Amazônia, nem desconfia que na verdade está trabalhando com uma imagem holográfica. Zero de real. Nem uma palavra que não fosse imaginação, ficção, quimera. O PAC, do Governo Federal, é uma tentativa de restituir um pouco de real, como diria Sartre, não como sofrimento na realidade objetiva, mas como construção do próprio destino.

Talvez salte aos obstáculos do olhar escotomizado SP/RIO—>MANAUS—>INTERIOR. Talvez se abra à percepção da formação da holografia amazônica, para fragmentá-la, tornando possível aos chamados indígenas usarem alguma substância alucinógena como forma da preservação do ser de sua natureza.

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