As grandes mídias de Direita estão em polvorosa. Os governos dos países alinhados ao império estadunidense vibram. Apresentadores de jornais pisam e repisam a notícia: Fidel Castro anunciou que não retorna mais à presidência de Cuba. Bush, direto da África, imediatamente louvou a iniciativa, afirmando que torce por uma “transição democrática”, onde não hajam mais presos políticos e nem torturas. Referia-se à Guantánamo?

Por que, diante de um mundo onde as ditaduras pululam – coincidentemente com a conivência dos EUA -, há mais de 47 o mundo acusa e sufoca economicamente uma ilhota na América Central, sem grande projeção econômica, sem grandes riquezas, e que só tem a oferecer ao mundo capitalista sua posição geograficamente estratégica, suas praias paradisíacas e o rebolado sensual de suas mulatas?

A resposta passa por três conceitos: liberdade, democracia, subjetividade.

LIBERDADE

Estranha palavra essa, que se ouve diariamente nos noticiários, nos discursos dos líderes mundiais, nas propagandas que louvam a liberdade de escolher o melhor produto, no voto que escolhe o melhor para o país.

Fidel Castro, Sartre, Simone de Beauvoir e Che Guevara

Queixa do Ocidente com relação ao regime cubano: não há liberdade. Os cubanos não podem ir e vir, não podem deixar o país se não for por via ilegal. Não podem escolher o que comprar, e nem mesmo seus governantes. Uma afronta à liberdade, palavra mágica do país das oportunidades, que lidera um embargo econômico perverso, e que dura os mesmos 47 anos de permanência de Fidel no cargo de presidente.

Acontece que o conceito de liberdade passa menos pela possibilidade de realizar um ato do que de concebê-lo e escolher livremente uma situação. A liberdade propalada pelos americanos é a liberdade do consumo: posso escolher este ou aquele, posso levantar-me, estás preso, encarcerado, perdeste a liberdade! Nada a ver com a liberdade existencial, à qual, segundo o filosofante Sartre, estamos condenados: a liberdade de se envolver, se “jogar” numa situação e assumi-la diante de si e do mundo, não como um fardo moral, mas como uma condição de existir. Toni Negri, filosofante italiano, escreveu no cárcere: “A vida é uma prisão quando não a construímos. E quando o tempo da vida não é apreendido livremente”. Escolher-se livremente no mundo só é possível a partir de uma tomada de posição que envolva a leitura dos códigos que compõem o social. “O miserável só pode sair de sua condição quando puder conceber um mundo onde a miséria não exista” (Sartre/Marx). Mais que uma frase de efeito, a ilustração de um conceito de liberdade ontológica, indiscernível da situação humana.

É a partir desta liberdade que Bush Jr escolheu não escolher, omitir-se, não ver, e se tornar uma insuportável conseqüência. Como não pode agir (escolheu-se livremente passivo), só lhe resta reagir: bombas, tiros, seqüestros, waterboarding, Guantánamo, os aviões da tortura, Abu Ghraib, a guerra. Da mesma liberdade que Fidel, Guevara, Cienfuegos escolheram não mais suportar o cotidiano da miséria, escolheram estranhar o que não é estranho. A partir de suas liberdades, escolheram escolher, responsabilizando-se ontologicamente pelos seus atos. Por tal, eles são irredutíveis ao julgamento da moralidade. A mesma que aponta as torturas do regime cubano e omite a tortura cotidiana da exploração e miserabilidade cinco vezes centenária na América Latina. A dificuldade de Bush e seus confrades em compreender que o povo cubano não precisa de heróis, nem ser salvo, decorre do entendimento errado do que vem a ser a liberdade. Não se pode saber o que é a liberdade se nunca se permitiu senti-la.

DEMOCRACIA

Recentemente a imprensa mundial destacou a voz de um rapaz, que no parlamento cubano inquiriu o presidente do legislativo sobre as proibições impostas aos cidadãos. Não poder viajar, conviver com o câmbio negro dos dólares, não poder ler certos livros. Na ocasião, encarou afirmativamente o presidente da casa, que em algumas situações afirmou, sem receio, não ter respostas prontas para os problemas apontados pelo jovem. Era a revolta da juventude contra o socialismo e as idéias do ditador barbudo, pensou a imprensa e os governosSeja bonzinho com a América ou nós levaremos Democracia para o seu pa�s. alinhados. Dias depois, o mesmo rapaz afirmou que não pretende acabar com o socialismo, mas aprimorá-lo, desenvolvê-lo.

Dizem que na Câmara dos Lordes, na Inglaterra, qualquer pessoa do mundo pode entrar e, a hora que bem entender, discursar, falando sobre qualquer assunto que quiser, criticando ou defendendo a quem ou em que acreditar. Nunca se soube de ninguém, jovem ou não, sem cargo político ou envolvido institucionalmente que tivesse ocupado esta tribuna para criticar o poder da rainha, ou a falsificação das provas da existência de armas de destruição em massa no Iraque, forjadas pelo ex-premier, Toni Blair. No congresso estadunidense, as rígidas normas de segurança impedem que qualquer manifestante chegue mais perto do congresso do que o portão externo.

Falar sobre os problemas de um país – e que não se reduzem a ele – com a lucidez, disposição e jovialidade que o cubano fez é sinal de que ali existe uma abertura afetiva-afetante para que as pessoas falem abertamente sobre os acontecimentos. Fidel Castro diz que nunca houve uma condenação por crime político que não tenha sido aprovada em unanimidade pelo conselho geral do país. Os EUA negam, e acusam o país de ter prisioneiros políticos. Em Guantánamo, the flag of stars and stripes tremula, impávida.

Enquanto nos EUA, no Paquistão, em Israel, no Egito, na Indonésia, Colômbia, Russia e outros países aliados aos interesses do capital, os ritos do processo democrático são respeitados religiosamente (ainda que na Russia, Putin se alterne entre a presidência e o ministério, e nos EUA as família Clinton e Bush queiram completar a segunda década de alternância na White House), e a população tem cada vez menos confiança nos seus representantes e vêem com um ceticismo cada vez maior o processo político, em Cuba os jovens acreditam piamente na mudança de paradigma, sem necessariamente abraçar o capital.

SUBJETIVIDADE

Cuba não é um país isolado de um contexto mundial onde o capital é o Deus único. Portanto, sofre as conseqüências de mais de 500 anos de exploração, ora pela Europa, ora pelos EUA. Diferente do Brasil e da Argentina, por exemplo, que mesmo tendo suas riquezas saqueadas Havana Bluespor séculos, ainda mantém recursos suficientes para pleitear um lugar de destaque no cenário econômico mundial, Cuba não tem produtos a negociar. É uma economia frágil diante da voracidade do mercado, e a população sente as conseqüências.

No entanto, a subjetividade que coloca as pessoas numa condição de rigidez existencial na maior parte do mundo – e em todo o mundo ocidental – em Cuba é enfraquecida. Longe de ser o paraíso de alegria que a esquerda tão esquerda que toca na direita apregoa, mas também fora do foco de república caudilhesca que a direita quer afixar, os cubanos exprimem na sua cultura as contradições de um capitalismo que produz uma subjetividade dura e opressiva.

Fidel e os cubanos deixam passar os fluxos, são atravessados pelos corpos que produzem afetos, que aumentam a potência de agir. Dentro das condições materiais a que são submetidos – não por sua posição política, mas pelo embargo econômico de mais de quatro décadas, somados aos anos em que foi parque de diversões e quintal dos EUA – os cubanos tem de longe o melhor sistema de saúde pública das Américas (que tratou os bombeiros sobreviventes do 11 de Setembro, abandonados pelo governo Bush), um dos mais impressionantes níveis de educação do mundo e é uma potência esportiva que luta de igual pra igual (sem as mesmas condições) que EUA, Canadá, Alemanha, etc, além de índices de violência social pífios em comparação com Brasil e EUA, por exemplo.

Todas estas conquistas não apagam as duras restrições à entrada de material literário, áudio-visual e internético averso à ideologia socialista, a dificuldade de emprego e renda encontradas pelos habitantes, a falta de água potável e energia, a exploração sexual a que se submetem as gineteras nas praias particulares, freqüentadas pela nata da high society européia, a aridez do solo decorrente dos anos de monocultura da cana-de-açúcar.

Mas se Cuba não é exemplo para o mundo em termos de circulação de informação e desenvolvimento tecnológico e econômico, também não é apenas mais uma ilhota servil aos interesses do capital, sobretudo estadunidense, que impõe à população passivamente as conseqüências da miséria social produzida pelo capital. Expõe, sem receios e rodeios, para quem quiser enxergar para além das palavras de ordem de um ou outro lado, as contradições de um sistema de produção perverso e alheio à condição humana, exprimindo também o possível que o capital não suporta: um mundo onde a miséria não é necessária.

CUBA: UMA ILHA DE REALIDADE NO OCEANO DA ILUSÃO ESTADUNIDENSE

O filosofante Franz Kafka, na sua literatura menor, diz que o necessário não é obter respostas, mas encontrar as perguntas necessárias. Cuba é o ponto de interrogação que questiona constantemente ao mundo: é este o mundo que queremos? Por ser esta ferida aberta na beleza intocável e irrepreensível do mundo capitalista, por ter a ousadia de se mostrar contrária a esta ordem, por ter um povo que não perde a capacidade de criar, sorrir, inventar, dançar, produzir, mais e melhor que os operários ianques, por ter governantes que não foram seduzidos pelo canto da sereia da vaidade e do orgulho, por exprimir um outro modo de conceber a existência, mesmo exprimindo as contradições do capitalismo, com o qual tem de conviver, impedindo a burguesia estadunidense e mundial de acreditar na perfeição do seu sistema, é que a pequena ilha da América Central incomoda tanto. Nenhum desprezador de si mesmo suporta conviver com alguém que não se despreza. O doente não suporta ver que a doença não é absoluta, mas uma contingência. Sofre por isto.

Portanto, EUA e companhia continuarão sofrendo. E Fidel lutando.

Fidel Castro

“Não me despeço de vocês. Desejo apenas lutar como um soldado das idéias. Continuarei a escrever sob o título ‘Reflexões do companheiro Fidel’. Será mais uma arma do arsenal com o qual se poderá contar. Talvez ouçam minha voz. Serei cuidadoso”.

Fidel Castro, 80 anos.

1 thought on “O CORTE/CUBA NO BLOCO RÍGIDO DO CAPITAL

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