A OUTRA VERTENTE DO TERRORISMO MIDIÁTICO

A palavra “terrorismo” tem sido usada nos últimos anos tanto pela mídia quanto pelos governos sobretudo estadunidense e aliados com um forte componente de moral de classe. Interessa dividir um mundo estupefato, em estado de choque, como sacou a filosofante Naomi Klein, e desorientado quanto a tempo e espaço vivenciais, em dois pólos facilmente identificáveis: os bons (ou “nós”), e os maus (eles, os terroristas).

O que escapa facilmente deste signo capturado pelo regime Significante Despótico do Estado capitalístico é que ele deixa de levar em conta as práticas, o modus operandi, que caracteriza e sempre caracterizou politicamente e cientificamente o terrorismo incluindo o terrorismo de Estado, praticado em ampla margem por EUA e muitos aliados, como Egito, Paquistão, Israel, dentre outros. Fato é que o Canadá, ainda que seja governado por um partido de direita, não hesitou em incluir os norte-americanos na sua lista de países que praticam o terrorismo.

Curiosamente, a mídia e estes governos procuram ocultar uma outra palavra, referente a uma prática próxima ao terrorismo: a tortura.

É sabido por quem se informa para além das ondas segmentadas da tevê e dos jornalões que os EUA praticam contumazmente a tortura em suas prisões no Iraque (Abu Ghraib é o exemplo mais conhecido), Cuba (a emblemática Guantánamo), Afeganistão, assim como praticou-a no Vietnam, nos Bálcãs, no seu quintal (podemos dizer ex-quintal?), a América Latina, em sua própria casa e em zil outros lugares. Consta que possui inclusive um serviço secreto, em estilo CIA, que seqüestra e tortura suspeitos de colaborar com os inimigos num avião, a fim de evitar as sanções internacionais, ligadas quase sempre aos territórios geopolíticos.

A mídia nesta jogada tem duas funções, uma bem clara, outra ainda difusa, mas com objetivos bem definidos e estratégias nada diferentes das usadas nos corredores e salas das já citadas prisões.

A primeira é a conhecidíssima cortina de fumaça. A criação do factóide e a ocultação do fato através do jogo de palavras, da omissão de informações que permitam a contextualização do acontecido no plano de historicidade, das trucagens de imagens e sons, fazendo com que se torne quase impossível a um videota-telespectador-leitor posicionar a notícia em relação ao seu próprio existir. Ao contrário, quando se trata de caluniar, difamar, criar uma situação inexistente a fim de prejudicar alguém, um governo ou um grupo de indivíduos, as notícias são minuciosamente construídas dentro do contexto individualista, de forma que o alvo possa adesivar o conteúdo à sua existência. Na primeira situação, o noticiário norte-americano de baixas no Iraque, bem como suas filiais mundo afora (Jornal Nacional e afins brazucas incluídos), que delimita o número de mortos diários numa enxurrada de outras palavras e num show estroboscópico de imagens. A notícia tem efeito neuroléptico. Sem possibilidade de reação. No segundo caso, a febre midiática é uma boa ilustração de como explorar o medo individualizado pode gerar resultados a curto prazo em termos de imobilização popular.

A outra vertente do terrorismo midiático é bem mais sutil.

A filial brasileira da MTV exibe na sua programação noturna um programa de uma colega estrangeira, legendado, onde um grupo de pessoas, com o objetivo de ganhar dinheiro, se submete a provas de tortura, como fazer cortes nas mãos com uma folha de papel e mergulhá-la em seguida numa solução de sal e vinagre, ou ser surrado nas nádegas com um pé-de-pato. A prova final é de inspiração Abu Ghraibiana: amarrar barbantes nos genitais e ter esse barbante violentamente puxado por outrem. E sem poder gritar. Na programação da engajada MTV brasileira (que já produziu a campanha que bem poderia ser by Boninho “ovos e tomates contra a corrupção”, e que defende ideais ambientais Greenpeaceanos), este programa é apenas mais um. Já houve quem se submetesse a cirurgias plásticas para ficar parecido com famosos, e até grupos considerados humorísticos (sic) cujo humor consistia em se colocar em situações de espancamento e outras violências auto-infligidas. A MTV brasileira, neste quesito, só tem rival na Rede TV!, com o seu anódino “Pânico”. Qual delas será a primeira a apresentar como atração principal o famoso waterboarding?

No entanto, existem formas mais sutis de tortura: humilhar, submeter as pessoas a situações vexatórias, condicionar o comportamento alheio e explorar a miséria social e existencial produzida pelos governos a fim de lucrar são formas de tortura que em nada diferem das torturas físicas, morais e psicológicas realizadas nos vôos da tortura estadunidenses. Programas de auditório estilo caldeirão, o humor estilo casseta, os programas pseudo-popularescos tipo ratinho, datena, irmãos covardes e companhia epistemologicamente limitada, Xuxa, enfim, qualquer programa televisivo ou coluna jornalística que coloque as pessoas como objeto de humilhação com o objetivo do lucro, ou que colocam as pessoas numa posição de impotência diante da sua própria condição social pode ser caracterizado como torturador.

Alguém poderia afirmar que se vive em uma sociedade civil de liberdades individuais, e que a estes participantes é dada a total livre escolha de participação ou não nestes programas. Não importa. Os meios de difusão de informações, independente se televisivos, impressos ou eletrônicos, são um serviço público, e devem ser analisados como tal. Tampouco se pode acusar telespectadores, produtores, apresentadores e participantes de sadismo. Sade buscava a libertação do corpo, não seu aprisionamento através da confirmação pelo olhar do outro (que não é outro) da condição de passividade social. Ainda, os participantes não estão limitados a um nicho social em particular. Todas as classes socioeconômicas tem seus representantes. Trata-se de uma modalidade da moral de classe, que se alimenta da dor própria e alheia para sustentar a ilusão do existir.

Mais sobre a Doutrina do Choque, aqui.

Esta coluna acredita na possibilidade da expansão da consciência pelas experiências autênticas que fazem soltar novas percepções, a criação de novos olhares sobre o mundo. Na alegria-estética de perceber o medium televisivo como uma violência à inteligência coletiva, contamos com a sua contribuição.

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