O FILÓSOFO SARTRE* FALA AO BLOG INTEMPESTIVO SOBRE O SER NEGRITUDE

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Não há do que se admirar. Movido pelo ser negritude e a destemporalidade movente intempestiva, este bloguinho da comunalidade foi encontrar o filósofo francês Sartre, morto em 15 de abril de 1980, para um engajado e libertário papo sobre a condição do negro. Como não poderia deixar de ser, o lero trans-correu leve e solto regado por algumas talagadas DA Macia e algumas baforadas cubanas. Presente de seu amigo Fidel.

Sartre no Bloguinho Intempestivo

BLOGUINHO INTEMPESTIVO – Para começar. Como devemos te tratar? Companheiro, camarada, filósofo, “seu” Sartre…

SARTRE (Sorrindo) – Qualquer tratamento antes de ser pronominal, é ontológico. Por mim pode mandar. Como for serei sempre um homem em situação.

BI – Tu és o filósofo que mais fez da filosofia uma práxis da liberdade. Sempre construindo o Homem Ponto Final. Andastes por mil e um territórios, por incrível que pareça, até aqui em Manaus aportastes, que loucura, tudo sempre em situações ontológicas fundadas na condenação do homem como Ser da Liberdade. Pois bem, como a classe oprimida deve se situar frente a esta sociedade das contradições?

S – Não resta dúvida que a classe oprimida deve primeiro tomar consciência de si mesma. Mas esta tomada de consciência é exatamente o contrário de uma reimersão em si: trata-se de reconhecer, na ação e pela ação, a conjuntura objetiva do proletariado que pode definir-se através das circunstâncias da produção ou da repartição dos bens.

BI – E no caso específico do negro?

S – O negro, como o trabalhador branco, é vítima da estrutura capitalista de nossa sociedade; tal situação desvenda-lhe a estreita solidariedade, para além dos matizes de pele, com certas classes de europeus oprimidos como ele; incita-o a projetar uma sociedade sem privilégio em que a pigmentação da pele será tomada como simples acidente.

BI – Mas sua condição de oprimido?

S – Mas, embora a opressão seja uma, ela se circunstancia segundo a história e as condições geográficas: o negro sofre o seu jugo, como negro, título de nativo colonizado ou de africano deportado. E, posto que o primem em sua raça, e por causa dela, é de sua raça, antes de tudo, que lhe cumpre tomar consciência. Aos que, durante séculos, tentaram debalde, porque era negro, reduzi-lo ao estado de animal, é preciso que ele os obrigue a reconhecê-lo como homem.

BI – Mas têm negros que não se querem negros.

S – O negro não pode negar que seja negro ou reclamar para si esta abstrata humanidade incolor: ele é negro. Está pois encurralado na autenticidade: insultado, avassalado, reergue-se, apanha a palavra “negro” que lhe atiram qual uma pedra; reivindica-se como negro, perante o branco, na altivez. Este racismo anti-racista é o único caminho capaz de levar à abolição das diferenças de raças.

BI – Infere-se no que afirmas que as consciências das classes trabalhadoras, branca e negra, são diferentes. E daí?

S – A consciência de classe do trabalhador europeu tem seu eixo na natureza do lucro da mais-valia, nas condições atuais da propriedade dos instrumentos de trabalho, em suma, nas características objetivas de sua situação; ao contrário, como o desprezo que os brancos ostentam para com os negros – e que não possui equivalente na atitude dos burgueses em relação à classe operária – visa tocá-los no fundo do coração, é mister que os negros lhe oponham uma concepção mais justa da subjetividade negra; por isso a consciência de raça centra-se sobretudo na alma negra, ou melhor, já que o termo aparece muitas vezes nesta antologia, em certa qualidade comum aos pensamentos e às condutas dos negros, que se chama negritude.

BI – Como assim, negritude?

S – Ora, para constituir conceitos raciais, só há duas maneiras de operar: transpõe-se para objetividade certos caracteres subjetivos, ou então, tenta-se interiorizar condutas objetivamente discerníveis; assim o negro que reivindica sua negritude num movimento revolucionário coloca-se de pronto no terreno da Reflexão, quer deseje encontrar em si próprio certos traços objetivamente verificados nas civilizações africanas, quer espere descobrir a Essência negra nas profundezas de seu coração (Pausa. Tomou uma talagada Da Macia)… A negritude toda presente e oculta o obseda, o roça, ele se roça em sua asa sedosa, ela palpita, toda distendida através dele, como sua profunda memória e sua exigência mais alta, como sua infância sepulta, traída, e a infância de sua raça e o chamado da terra, como o formigamento dos instintos e a indivisível simplicidade da Natureza, como o puro legado de seus antepassados e como a Moral que deveria unificar a sua vida truncada.

BI – O engajamento negritude implica, também, na libertação da opressão que a linguagem branca lhe impõe.

S – Em parte alguma isso se evidencia tanto como em seu modo de usar os dois termos conjugados “negro-branco” que recobrem ao mesmo tempo a grande divisão cósmica “dia e noite” e o conflito humano do nativo e do colono. Mas é um par hierarquizado: ministrando-o ao negro, o professor ministra-lhe, ademais, centenas de hábitos de linguagem que consagram a prioridade do branco sobre o negro. O negro aprenderá a dizer “branco como a neve” para significar a inocência, a falar da negrura de um olhar, de uma alma, de um crime. Desde que abre a boca ele se recusa, a menos que se encarnice em derrubar a hierarquia.

BI – Quer dizer então, que este truque do branco-colonizador querer o negro preso a cor, é uma das maiores fraudes histórica?

S – O negro não é uma cor, mas a destruição desta clareza de empréstimo que cai do sol branco. O revolucionário negro é a negação porque ele se quer puro desnudamento: para construir sua verdade, deve arruinar primeiro a dos outros. Os semblantes negros, estas manchas de noite que obsidiam nossos dias, encarnam o obscuro trabalho da Negatividade que rói pacientemente os conceitos. Assim, por um retorno que lembra curiosamente o do negro humilhado, insultado, quando ele se reivindica como “negro imundo”, é o aspecto privativo das trevas que funda seu valor.

BI – Assim, para ele, a liberdade…

S (Cortando com entusiasmo) – A liberdade é cor da noite.

BI (Aplaudindo tresloucadamente) – Que porrada, cara! Essa é para se tornar lema de luta, meu irmão! Cacete! Intempestivamente como o tempo escorre. Sabemos da tua gentileza em nos atender, apesar da pressa em ter que viajar para o Oriente, entretanto, gostaríamos que fizesses, para nós e nossos amigos blogueiros, uma pequena síntese desta situação.

S – A situação do negro, sua “dilaceração” original, a alienação que um pensamento estrangeiro lhe impõe sob o nome de assimilação obrigam-no a reconquistar sua unidade existencial de negro ou, se se prefere, a pureza original de seu projeto, por ascese progressiva para além do universo do discurso. A negritude, como a liberdade, é ponto inicial e termo final: trata-se de passá-la do imediato ao mediato, de tematizá-la. Portanto, no tocante ao negro trata-se de morrer para a cultura branca a fim de renascer para a alma negra, assim como o filósofo platônico morre para seu corpo com o fito de renascer para a verdade. Tal retorno dialético e místico às origens implica necessariamente um método. Mas este não se apresenta como um feixe de regras para direção do espírito. Constituí uma unidade com quem o aplica; á a dialética das transformações sucessivas que hão de conduzir o negro à coincidência consigo mesmo na negritude. Não se trata para ele de conhecer, nem de arrancar a si próprio no êxtase, porém de descobrir, ao mesmo tempo, e tornar-se aquilo que ele é.

*Enunciação a título de virtual/atual e real: Tirando todas as perguntas do BI e a primeira resposta de Sartre, que são fictícias, todas as respostas do filósofo existencialista foram elaboradas e extraídas de sua obra, Reflexões Sobre o Racismo.

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