Lula

Aniversarialmente, o que vale são os encontros, as experiências do existir, e aquilo que se produz. Quando a temporalidade cronos procura capturar a data para o uso de um consumo vazio – a festa, os presentes, as homenagens servis – então é ilustração da decadência, da submissão a um entendimento errôneo de passado. No entanto, quando se aproveita a data para contrair a memória, a fim de produzir no presente afectos e perceptos que carregam fluxos de alegria, então está valendo. Quando a existência é atravessada pelos acontecimentos, transbordando a inexistência do indivíduo, e a irrupção do fluxo vital, aí se pode falar em aniversário.

E é nessa onda-fluxo que este Bloguinho Intempestivo ilustra aqui algumas das muitas linhas existenciais-afetantes que atravessaram a existência do companheiro Inácio da Silva, feito ‘Lula’ no seu caminhar, ele, nascido como corpo bio-político em 27 de outubro de 1945, e milhões de outros Lulas e o Brasil todo, que não cabe na pequenez da direita.

Um não-lugar da Eternidade …uma linha cortava por baixo da crosta como um metal, um phylum, escapando do panóptico biônico do SNI e das garras de aço dos torturadores num movimento contínuo, imperceptível, agregando trabalhadores, filósofas, sindicalistas, educadores, estudantes, músicos, agricultores, metalúrgicos, uma multidão de territórios existenciais de potências singulares relacionadas numa vizinhança micropolítica, ativando uma Multiplicidade autônoma e dinâmica…

1989 …nessa zona de proximidade democrática, a Multiplicidade resolveu tomar partido como uma forma de defesa dos fortes, como diria Nietzsche — fortes porque constroem coisas, dizeres, afetos de resistência —, contra a representação massacrante. Em 89 o Movimento entrou bruscamente numa lentidão, diminuindo sua velocidade devido a um choque com o corpo mau da Mentira — mau não no sentido maniqueísta de bem/mal, mas no sentido spinozista como aquilo que diminui a potência de um corpo para agir no mundo. Mas, como diz Hannah Arendt, “uma mentira pode até ocultar uma verdade, mas jamais substituí-la”. E a verdade, pequena verdade autêntica das minorias excluídas se manifestou na linha que não se subordinou aos pontos segregadores do poder e prosseguiu…

1994 …na sua trajetória intensiva, muitos se chegaram a ela somente para fazer pose e gravar sua imagem miraculosa na fotografia, exibindo a toga e o anel como superação da foice e do serrote. Como no enunciado desvelador da sordidez cretina da “pirangação”, dito por um burguês no Encouraçado Potenkim, de Eisenstein, no momento em que explode a Revolução na Rússia: “Pérolas com os porcos”. E assim o Embuste saltou, gestalteanamente falando, do fundo rastejante para o primeiro plano a operar, como mágico a iludir, a prestidigitação fantasiosa; não conseguindo anular, contudo, no plano do real, o olhar desinfantilizador e o gesto desmistificante operados pela Multiplicidade afetiva desejante aos seus truques de charlatão…

1998 …desmascarado, o Embuste endureceu ainda mais na Tirania desesperada de perpetuação elitista: primeiro rasgaram-se as cartas dos homens e se forjaram outras com falsas novidades; depois a direita estúpida e violenta decepou um dedo do operário e exibiu sua “mão grande”, perfeita, absoluta, instituindo seu império de dor e subserviência ao Império maior, americano. Mas outras cartas continuaram a ser escritas, em letras miúdas foram se insurgindo de todos os pontos tocantes à linha livre da Multiplicidade…

2002 …diante da cristalização da linha dura, que bloqueou os afetos por 8 longos anos, ela não se deixou capturar, abriu frestas de luz no buraco negro (Baudrillard) e perseverou no seu devir constante. Mas eis que as “armadilhas do devir” (Deleuze e Guattari) vieram tentar impedir a passagem do fluxo multifluente com o recrudescimento da violência, que transpareceram na boca: de senadores e deputados tanto da Direita elitista (e “elite” significa “melhor”. O que tem de melhor na elite brasileira?) quanto da Ultra-Esquerda (que toca à direita), conluiados com a mídia globolizada, que corroborou com palavras vazias de interesse público, mas carregadas de preconceito e embrutecimento; o próprio Ministro do TSE trouxe o des-curso da “ingovernabilidade”. Parecia até, como gorgolejaram os “mais justos”, que a Multiplicidade sofria o golpe nazi-fascista da eliminação. Mas “o covarde só chuta cachorro morto”. E eis que pelo meio da noite, justamente na vitrine high societydo discreto charme da burguesia de Amaury Jr, Fafá de Belém destoou, relembrando quando ela, o engajado Gonzaguinha e outros artistas subiram em palcos com Lula; o de-compositor, jardineiro, politizado Tom Zé foi por aí e explicou que o tal do propalado Mensalão já existia desde o tempo da monarquia, passando por Collor e FHC; Marilena Chauí, com a serenidade da filósofa-prática, preparou-se e saiu de “escudo e ginete” para enfrentar os hunos; Mino Carta chamou-o pra conversar: “Vai lá e fala”; Hugo Chávez convocou-o: “Conclama o povo”…

2006 …e começou a aparecer de todos os pontos da linha os trabalhadores, mendigos, sem-terra, crianças, poetas, sem-teto, lésbicas, estudantes, domésticas, carpinteiros, cristianos, transexuais, pedreiros, simpatizantes, músicos, seringueiros, atores, macumbeiros, blogueiros, orkuteiros, agricultores, motoristas, gays, sorveteiros, peixeiros, filósofos, diminuindo a força da falácia representação pela tomada de posição. Agora eram muitos “olhos do espírito” para perceber a Grande Mentira; infinidades de ofícios e experiências em vez da simulação universitária; se um dedo lhe falta, existem zil para formarem trezentos milhões de mãos. Lula ganhou o debate. Não era ele, era a Multiplicidade. Eram as horas de almoço dos operários. Sabe o que é isso? Alckmin não sabia. Na fotografia dos novos dias, uma criança toca o rosto de Lula, olho no olho, há ternura ali. Ninguém de direita alcança isso. Uma cartografia de desejos que se cria com tudo o que escapa para a suavidade, a inteligência, o humor da Multiplicidade L U L A, que segue aniversariante…

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